Giuseppe De Santis foi um colaborador da revista 'Cinema', publicação quinzenal que era dirigida por Vittorio Mussolini, o filho do Duce, junto com outros jovens talentosos que, posteriormente, também ganharam destaque no cinema italiano, tais como Carlo Lizzani, Gianni Puccini e Antonio Pietrangeli.
De Santis também estudou, em 1940/1941, no 'Centro Experimental de Cinematografia', escola de Cinema que foi fundada em 1935. Michelangelo Antonioni, Alessandro Blasetti, Dino de Laurentis, Pietro Germi, Alida Valli e Clara Calamai, todos importantes nomes do cinema italiano nas décadas seguintes também estudaram ali. Ele também foi mais um dos inúmeros cineastas italianos que se ligou ao PCI (Partido Comunista Italiano).
O cineasta Giuseppe De Santis foi um dos pioneiros, bem como um dos principais nomes do Neo-Realismo italiano. |
A) A denúncia da exploração dos trabalhadores (as mulheres do arrozal);
B) O uso de atores e atrizes não profissionais;
C) Filmagens que foram realizadas em locações naturais.
A história do filme deveria girar em torno das relações de trabalho envolvendo as centenas de mulheres que, anualmente, fazem a colheita do arroz em uma região do Norte da Itália durante um período de quarenta dias. Mas apenas uma parte do filme trata deste assunto.
Estas mulheres saem de inúmeras regiões do país para ir até o local para trabalhar na colheita. O fato é um verdadeiro acontecimento midiático, chamando a atenção de uma emissora de rádio de Turim.
O esquema de trabalho no arrozal é baseado numa disciplina e hierarquia rígidas, com alguns capatazes organizando e comandando tudo. Para trabalhar no local, é necessário possuir a autorização do sindicato, mas um grupo de 40 trabalhadoras clandestinas também quer participar da colheita do arroz. Elas são ‘agenciadas’ por dois ‘picaretas’, que as introduzem no arrozal e que ficam com uma parte do que elas produzem.
Os agentes das trabalhadoras clandestinas convencem os capatazes a aceitar a presença delas com base na promessa de que elas irão produzir mais do que as outras trabalhadoras (legalizadas) e que eles, capatazes, irão lucrar com isso.
O trabalho delas é prejudicado, no entanto, pelas chuvas intensas que caem na região durante vários dias seguidos. Como a remuneração das trabalhadoras (que são pagas com arroz) está ligada à quantidade de arroz que elas colhem, quanto menos dias elas trabalharem, menor será a remuneração.
Silvana Mangano exibindo as suas belas coxas. O uso da beleza física das atrizes não era algo comum nos filmes neo-realistas. |
Porém, o foco principal do filme não são as relações de trabalho entre as mulheres e os seus empregadores, como seria de se esperar de um filme neo-realista típico.
O filme acaba girando em torno de acontecimentos que envolvem uma das trabalhadoras que vai para o arrozal, que é Silvana, que é interpretada pela jovem, bela e sensual Silvana Mangano.
A beleza física e a sensualidade explícitas de Silvana Mangano são o atrativo principal do filme, o que é algo incomum quando se trata do cinema neo-realista, que sempre se caracterizou por mostrar a realidade de pobreza, miséria, desigualdades, injustiças, privilégios e atraso que caracterizavam a Itália da época.
A valorização da beleza física das personagens femininas é uma característica que não está presente nos filmes neo-realistas típicos.
Logo, ‘Arroz Amargo’ é uma grande e solitária exceção, pelo menos no momento em que foi produzido (1949).
Essa mudança no foco desta produção neo-realista pode estar relacionada a vários fatores, tais como:
A) Alguém da equipe de produção do filme se apaixonou por Silvia Mangano, que estava no auge da beleza e da sensualidade em seus 19 anos. Isso, de fato, acabou acontecendo. O produtor do filme foi Dino de Laurentis, que acabou se casando com Silvana Mangano, com quem teve quatro filhos. Eles viveram juntos até 1989, quando ela faleceu.
B) Os produtores do filme decidiram explorar a beleza de Silvana Mangano para poder faturar e lucrar mais e transformá-la em um símbolo sexual, fazendo isso em um momento no qual os filmes neo-realistas já não atraíam o interesse do público italiano;
C) A censura que o governo Democrata-Cristão passou a promover, cortando cenas e dificultando a exibição dos filmes neo-realistas, em função do fato de que os mesmos mostravam uma realidade de pobreza e atraso, que marcavam a Itália da época, que o governo direitista e conservador, que se instalou no país em 1948, não queria que fosse mostrada nos filmes nacionais. Tal censura era feita por pessoas ligadas à Igreja Católica, que acusava os filmes neo-realistas de serem 'amorais' e de defenderem ideais comunistas.
Assim, De Santis percebeu que não poderia explorar o tema das relações de trabalho com a importância e da maneira que gostaria. Desta forma, ele teria escolhido uma saída, também polêmica, que foi a de explorar a beleza e a sensualidade de Silvana Mangano.
Durante o filme, a bela Silvana aparece em inúmeros momentos com diferentes partes do seu corpo à mostra: coxas, costas, ombros e braços.
E isso é feito em diferentes cenas nas quais Silvana aparece: deitada na cama, no arrozal, em uma escada. O belo rosto e os lábios sexy e carnudos de Silvana também ficam em evidência em vários momentos. É bom ressaltar que isso não era comum no cinema produzido nesta época, muito menos nas produções neo-realistas, como já ressaltei.
É como se De Santis tivesse decidido se vingar dos censores ligados à Igreja Católica, pensando ‘Ah, esses reacionários da Igreja Católica me pagam. Já que eu não posso mostrar a exploração das trabalhadoras do jeito que eu quero, então irei exibir o belo corpo e a sensualidade da Silvana Mangano’.
Independente dos motivos que o levaram a agir desta maneira, De Santis claramente dá uma grande ênfase à beleza de Silvana Mangano, embora conecte a vida desta com a situação de exploração e miséria em que ela e as trabalhadoras do arrozal vivem.
Além disso, o fato de Silvana desistir de continuar trabalhando no arrozal e se ligar ao ladrão do colar (Walter), na expectativa de desfrutar de uma vida melhor, é um elemento que também estava presente nos filmes policiais Noir, que começaram a ser produzidos na década de 1940, nos EUA.
E não se pode esquecer que Giuseppe De Santis foi assistente de direção em 'Ossessione', de 1943, que é considerado por muitos estudiosos como o primeiro filme neo-realista e que foi adaptado do romance policial Noir 'O Destino Bate à Sua Porta', de James M. Cain, que havia sido publicado em 1934. Essa influência dos filmes ‘Noir’ também está presente em ‘Arroz Amargo’, principalmente na sequência final.
E contar uma história com tais características, de uma jovem miserável que apela para o crime a fim de melhorar de vida, era uma maneira de mostrar que a ascensão social e econômica era inviável por meio do trabalho honesto, ou seja, acabava sendo uma forte crítica à sociedade italiana.
Mas a tentativa de Silvana acabará fracassando, até porque a proposta neo-realista poderia até explicar os motivos das pessoas apelarem para atividades criminosas para poder melhorar de vida, mas não defendiam tal opção. Os cineastas neo-realistas valorizavam o trabalho, tal como também acontecia com o PCI, ao qual muitos deles eram ligados.
Com essa crescente repressão que os filmes neo-realistas passaram a sofrer, vários cineastas ligados ao ‘movimento’ se afastaram do mesmo, enquanto que outros passaram a produzir filmes mais leves, em tom de humor, dando origem ao que se chamou de ‘Neo-Realismo Rosa’.
Tais filmes mostravam a situação de exploração dos trabalhadores, desemprego elevado, desigualdades sociais, pobreza e abandono das periferias, mas eles faziam isso em um tom mais leve e mais bem humorado do que as primeiras produções do Neo-Realismo. Este foi o caso de ‘Le Ragazze di Piazza di Spagna’ (dirigido por Luciano Emmer, de 1952), que já foi comentado aqui no blog.
Em ‘Arroz Amargo’, Silvana acaba se envolvendo com um casal (Walter e Francesca) que está ligado ao roubo de um colar de grande valor. Eles estão sendo procurados pela Polícia em função disso. Francesca tenta conseguir trabalho no arrozal, mas ela e outras 40 mulheres são clandestinas, ou seja, querem trabalhar sem ter a autorização do sindicato para isso.
Silvana Mangano, em uma das mais belas cenas de 'Riso Amaro'. |
No entanto, o conflito entre Silvana e Francesca acabou por aproximar as duas, que vão se tornar amigas. Francesca acaba por contar a história da sua vida para Silvana, dizendo que havia engravidado de um homem (Walter) que se aproveitava dela e que a obrigou a abortar o bebê. Ela também diz que roubou um valioso colar de um hotel no qual havia trabalhado como empregada por ter sido convencida pelo mesmo homem.
Silvana também conhece um militar (o sargento Marco) que se apaixona por ela, que chega a demonstrar ciúme quando a vê dançando com Walter. Porém, ela irá acabar Marco, pois vê no desonesto Walter e seu colar de milhões a grande chance de sair da vida de miséria que leva até aquele momento. Enquanto isso, Francesca é que sente-se atraída por Marco.
Silvana usa do seu charme, beleza e capacidade de sedução para atrair o ladrão Walter, embora não perceba que este pretende usá-la para levar adiante um ambicioso plano de roubo de arroz, ou seja, quer fazer com ela o mesmo que já havia feito com Francesca.
Logo, Walter não possui nenhuma intenção de ter um relacionamento sério com Silvana, mas esta aceitou ficar noiva dele depois que o mesmo lhe deu o colar, acreditando que, desta maneira, poderia sair da miséria na qual vive.
Nestas circunstâncias, o sargento Marco e Francesca acabam se aproximando. Afinal, Francesca quer ter uma vida correta ao lado de um homem simples, mas honesto, o que é o caso de Marco.
Com isso, Silvana termina por se envolver em um plano de Walter, que pretende roubar a produção de arroz que está guardada no local. Eles decidem levar o plano do roubo adiante durante a realização de uma festa que será feita em homenagem às mulheres trabalhadoras do arrozal e que acontecerá com a presença do prefeito local.
Assim, enquanto Silvana abre as comportas e desvia a atenção de todos que estão na festa, Walter e mais três picaretas (os agentes das trabalhadoras clandestinas) roubam o arroz, colocando o mesmo em dois caminhões. Mas a abertura das comportas fez com que os caminhões ficassem entalados, impossibilitando a fuga dos ladrões, que acabam sendo presos ali mesmo.
Além disso, Marco e Francesco descobrem sobre o plano do roubo e decidem tentar impedir que o mesmo seja levado adiante, pois se o mesmo for bem sucedido as trabalhadoras irão embora sem receber coisa alguma pelo trabalho que realizaram (elas terão direito a 40 kg de arroz cada uma, ou seja, 1 kg de arroz por cada dia trabalhado).
Os dois casais acabam se enfrentando, com troca de tiros, e é neste momento que Silvana fica sabendo, por meio de Francesca, que o colar é falso e que o mesmo não vale coisa alguma. Sentindo-se traída, Silvana atira e mata Walter, por quem foi enganada.
Em estado de choque e com o rosto cheio de lágrimas, ela decide colocar um fim a tudo, cometendo suicídio (outro tema que não era muito comum nos filmes neo-realistas). Essa atitude de Silvana não foi resultado, apenas, de ter sido enganada por Walter, mas também foi provocada pelo fato de que ela não acredita que poderá melhorar de vida por meio do seu trabalho.
E as trabalhadoras a homenageiam, jogando um pouco de arroz sobre o corpo dela (coberto e sem vida).
Não fica claro se as trabalhadoras ficaram sabendo do envolvimento de Silvana com o plano de roubar o arroz que elas haviam colhido, mas com certeza elas têm consciência de que Silvana foi mais uma vítima da exploração que sofria e da miséria na qual viveu desde que veio ao mundo. Isso ajuda a entender a identificação que elas sentem em relação à Silvana.
Neste aspecto, o encerramento do filme está inteiramente de acordo com os cânones do Neo-Realismo.
Vittorio Gassman interpreta Walter, um ladrão que faz falsas promessas para as mulheres que procura atrair, a fim de usá-las em suas atividades criminosas. |
‘Riso Amaro’ (Arroz Amargo);
Diretor: Giuseppe De Santis;
Roteiro: Giuseppe De Santis; Carlo Lizzani; Carlo Musso; Corrado Alvaro; Gianni Puccini; Ivo Perilli;
Ano de Produção: 1949; País de Produção: Itália;
Gênero: Drama; Duração: 104 minutos;
Música: Goffredo Petrassi;
Fotografia: Otello Martelli;
Elenco: Silvana Mangano (Silvana); Vittorio Gasmann (Walter Granata); Ralf Valone (Marco, o militar); Doris Dowling (Francesca); Anna Maestri (Irene); Maria Grazia Francia (Gabriella); Nico Pepe (Beppe); Checco Rissone (Aristide); Adriana Sivieri (Celeste); Lia Corelli (Amelia); Dedi Ristori (Anna); Maria Capuzzo (Giulia).
Link:
Dino de Laurentis deixou marca forte na história do Cinema:
http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,dino-de-laurentiis-deixou-uma-marca-forte-na-historia-do-cinema,638453
O corpo de Silvana, após o seu suicídio, que foi resultado do seu desespero, e que foi provocado pelo fato de que ela não tinha mais esperanças de sair da miséria em que sempre viveu. |
Um comentário:
Muito boa, completa e esclarecedora crítica! Vou seguir seu blog, pois aprecio muito o CINEMÃO, principalmente os clássicos italianos
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