quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

'Sorte Cega': Kieslowski fez um clássico sobre o destino da Polônia e do ser humano! - Marcos Doniseti!

'Sorte Cega': Kieslowski fez um clássico sobre o destino da Polônia e do ser humano! - Marcos Doniseti! 
'Przypadek' ('Sorte Cega'): Ótimo filme de Kieslowski que mostra quais os caminhos que a Polônia poderia seguir, bem como de que maneira o acaso pode definir o rumo de nossas vidas. Filme foi produzido em 1981, mas somente foi liberado em 1987 pelo governo polonês devido às críticas que fazia ao regime comunista. 

Kieslowski e a Polônia!

O polonês Krzysztof Kieslowski foi um dos principais cineastas da história, sem dúvida alguma. Ele é o autor de uma obra belíssima, sendo o criador de vários clássicos do Cinema mundial, tais como são os casos dos filmes que constituem a chamada 'Trilogia das Cores' ('A Liberdade é Azul', 'A Igualdade é Branca' e 'A Fraternidade é Vermelha').

A obra de Kieslowski, que teve uma longa carreira como realizador de documentários, possui uma íntima relação com a história da Polônia, principalmente com aquele período que remete ao momento de crise final do regime comunista do país, que desmoronou em 1990, quando tivemos a eleição direta de Lech Walesa (principal líder do  movimento 'Solidariedade') como o novo Presidente da Polônia.

Este é o caso deste ótimo filme que é 'Sorte Cega' '('Przypadek' é o título original), que foi produzido em 1981, mas que foi censurado e que acabou sendo liberado pelo governo polonês apenas em 1987, ou seja, já na fase final de existência do regime socialista, que acabou sendo derrubado, de forma relativamente pacífica, e com uma transição negociada entre o governo do país (liderado pelo general Jaruzelski) e o movimento 'Solidariedade', liderado por Lech Walesa.

E a razão para a demora da liberação de 'Sorte Cega' fica clara quando assistimos ao filme, que faz uma dura crítica ao regime de governo do chamado 'Socialismo Real' que vigorava no país, questionando os motivos pelos quais os dirigentes comunistas se recusavam a abrir mão do poder e contestando claramente o suposto idealismo dos mesmos.
O adolescente Daniel aparece no início do filme e, depois, já adulto, irá reaparecer em uma das histórias.

Em 'Przypadek' também fica claro que o regime comunista polonês era bastante impopular e que o mesmo não contava com a simpatia dos poloneses, citando a realização de greves e protestos contrários ao governo do país, em vários momentos históricos, e que também ocorriam naquele momento (na época da produção do filme o 'Solidariedade' estava no auge).

Quem assistisse ao filme, naquela época, ficaria convicto de que o regime comunista não iria durar muito tempo, o que, de fato, acabou acontecendo. Não é exagero dizer que, em 'Sorte Cega', Kieslowski profetizou o fim daquele sistema. Um dos personagens (Adam), dirigente do Partido Comunista, diz que o governo comunista irá desmoronar e que precisarão deles, os burocratas, para 'juntar os pedaços' quando isso vier a acontecer.

E foi o que aconteceu na Polônia e, também, nos demais países do chamado 'Socialismo Real' quando tais governos foram derrubados, entre 1989/1990.

E o genial Kieslowski também trata de mostrar, em 'Sorte Cega', quais seriam os possíveis caminhos que a Polônia e os povos que viviam sob os regimes do 'Socialismo Real' do 'Leste Europeu' (Hungria, Tchecoslováquia, Bulgária, Romênia, Alemanha Oriental) poderiam seguir sob aqueles sistemas de governo. Atuar dentro do governo para poder modificá-lo? Se integrar à Resistência? Ou adotar uma atitude apolítica?
Cena que mostra Witek cursando Medicina. Em uma das histórias (a terceira) ele irá se formar e seguirá a carreira de médico e em outras não. 

E o filme também pode ser visto como uma forma de mostrar que as decisões que tomamos em nossas vidas irá nos conduzir a destinos muitos diferentes. Se pegarmos um trem, a nossa vida será uma. Se não o pegarmos, a vida que teremos será radicalmente distinta. É o acaso decidindo as nossas vidas.

No caso da Polônia, no momento histórico (1981) em que Kieslowski está produzindo 'Przypadek', o sindicato 'Solidariedade' já tinha conseguido um apoio maciço da população (chegou a ter 10 milhões de membros) e conseguia promover inúmeras greves e protestos pelo país (o que, aliás, é citado no filme), mas também era duramente perseguido e reprimido pelo governo polonês.

Obs1: Em dezembro de 1981, um governo militar tomou o poder na Polônia e, sob o comando do general Wojciech Jaruzelski, colocou o 'Solidariedade' na ilegalidade e prendeu os seus principais líderes (incluindo Walesa). Tudo indica que os militares poloneses fizeram isso para impedir que as tropas do 'Pacto de Varsóvia' (organização militar que reunia a URSS e os demais países do bloco soviético europeu) invadissem a Polônia, tal como já haviam feito em 1956 (Hungria) e em 1968 (Tchecoslováquia).

E Kieslowski trata de mostrar essa realidade dos países do bloco soviético (e do destino que nos aguarda) com base na vida de um jovem estudante de medicina (Witek), que tem dúvidas a respeito do que fazer da sua vida. E as dúvidas de Witek podem, muito bem, ser relacionadas aos rumos que a própria nação polonesa poderia tomar naquele momento em que o filme foi realizado.
O pai de Witek pediu ao filho que fosse uma pessoa honesta. E o mesmo cumpriu com esta vontade. 

Obs2:
É bom esclarecer que foi a invasão da Polônia pela Alemanha Nazista que desencadeou a Segunda Guerra Mundial na Europa, em 01/09/1939. Na Ásia, a Guerra já havia se iniciado em 1931, quando o Japão invadiu e ocupou a Manchúria, região do norte da China. Entre 1939 e 1941 a Polônia terminou sendo dividida e ocupada por alemães e soviéticos e, ao final do conflito, a URSS acabou impondo um regime de governo tipicamente stalinista ao país, o que era rejeitado pela maioria do povo polonês, que preferia um governo liberal. Mas naquela época era a vontade das Grandes Potências que valia e não as dos povos de cada nação. A Grécia, por exemplo, seguiu o caminho oposto. Sua população, ao final da Segunda Guerra, era majoritariamente socialista e, no entanto, ela foi obrigada a aceitar a submissão do país ao Capitalismo Ocidental. E para impor esse sistema, ali também foi necessário instalar uma Ditadura brutal, que massacrou a oposição e eliminou milhares de pessoas. Na Espanha, um governo de Esquerda havia sido democraticamente eleito em 1936, mas um Golpe de Estado (liderado por Francisco Franco) iniciou uma Guerra Civil e impôs uma Ditadura que matou cerca de 2 milhões de espanhóis até ser derrubada, em 1975. A Ditadura de Franco somente durou tanto tempo porque a mesma contou com o apoio dos EUA e dos demais países capitalistas. 

Kieslowski e o acaso!

Witek é um jovem que decidiu seguir a carreira de médico para atender à vontade de seu pai. Mas, poucos segundo antes de morrer, ao falar com o mesmo ao telefone, ele ouviu que não precisaria mais fazer isso, ficando livre para escolher o seu destino.

E é a partir daí que o filme se dividirá em três partes, nas quais também fica claro que as decisões que tomamos sofrem a interferência do acaso e que o mesmo acaba sendo decisivo no rumo que as nossas vidas irão tomar.
Witek conheceu Werner, o veterano dirigente comunista, no trem que o leva à Varsóvia e isso mudou o rumo de sua vida. 
Assim, se você for a uma balada, ao teatro ou ao cinema, poderá acabar conhecendo o amor de sua vida e, assim, será muito feliz ao lado do mesmo. Mas se você não fizer nada disso, isso significa que você não o encontrará e, desta maneira, poderá ser uma pessoa triste e solitária até o fim dos seus dias.

Tais dúvidas quanto a que rumo seguir levam Kieslowski a contar três diferentes histórias de vida para Witek: Na primeira ele se torna um dirigente bem sucedido do Partido Comunista depois que conheceu Werner durante a viagem de trem. Na segunda história, ele se torna um militante do movimento de Resistência que luta para derrubar o regime comunista polonês depois que foi preso e condenado a prestar serviços comunitários, período durante o qual conheceu um militante do movimento estudantil. E na terceira trama ele é um médico e profissional dedicado e bom pai de família, mas totalmente apolítico, que não é favorável e nem contrário ao governo do país, mas que no fim acaba tendo que tomar uma posição.

Nas três histórias percebe-se um elemento em comum, que é o fato de que Witek é uma pessoa honesta, correta, decente, justa e que deseja o melhor para todos. Mas nas três histórias as suas tentativas de agir sempre de maneira honesta não o impede de se envolver em situações nas quais os outros acabam sendo vítimas de injustiças.

Na primeira trama, por exemplo, o fato dele ser dirigente, correto e honesto, do Partido Comunista não impede que a sua namorada (Czuszka) seja presa pela Polícia Secreta por envolvimento em atividades políticas.
Witek reencontra Czuszka, uma antiga namorada, com quem ele reata o relacionamento. 
Na segunda história, ele participa de atividades do movimento de Resistência, acaba sendo seguido pela Polícia Secreta que, por meio dele, acaba chegando aos outros militantes, que são presos. E como ele não foi preso, acaba sendo visto como suspeito e é expulso do movimento.

E na terceira história, Witek tenta se manter alheio à qualquer forma de atividade política, mas acabará mudando de opinião e se envolvendo, com a finalidade de ajudar ao seu amigo e professor de Medicina, fato este que o levará a ter um final trágico.

Esta acaba sendo uma maneira de Kieslowski criticar aqueles que tentavam se manter alheios ao que estava acontecendo na Polônia naquele momento.

Kieslowski: Três filmes em um!

As três histórias começam de forma muito semelhante: Witek sai correndo para comprar uma passagem a fim de 'pegar' o trem que o levará até Varsóvia, capital da Polônia. Nas três oportunidades temos pequenas diferenças, bem sutis, neste momento.
Nas três histórias em que o filme se divide, Witek corre para tentar pegar o trem. O resultado de cada tentativa será diferente e isso resultará em vidas distintas para o jovem estudante. 

Na primeira história, Witek esbarra em um homem que está bebendo cerveja na estação ferroviária e derruba o copo de sua mão. Na segunda trama, ele se choca com o mesmo, mas não derruba o copo dele. E na terceira história, ele empurra o homem, mas sem derrubar o copo de cerveja.  

O filme começa com algumas cenas aparentemente desconectadas, mas que estão claramente relacionadas às três histórias que serão desenvolvidas.

A primeira cena mostra algumas pessoas mortas, sangrando e sendo arrastadas no corredor de um hospital, como se tivessem sido vítimas de algum ato de violência ou de repressão. A segunda cena mostra um pai ensinando o seu filho a fazer conta e a escrever números (e o número oito tem um destaque especial... o motivo disso ficará claro mais adiante). Na terceira cena vemos uma criança, Daniel, se despedindo de seu amigo, pois irá morar na Dinamarca.

Em uma quarta cena vemos um grupo de professores em uma reunião, enquanto uma criança (que tudo indica ser Witek) os espiona. Depois vemos outra cena, na qual Witek e a sua namorada (Czuszka) estão se beijando na beira de uma rodovia e um caminhoneiro o provoca.

E mais adiante também assistimos a uma cena na qual uma mulher está tendo o seu corpo cortado como parte de uma aula a estudantes de Medicina, incluindo Witek e uma jovem e bonita loira (Olga). Esta acaba sentindo-se mal e isso chama a atenção de Witek, que nunca havia conversado com ela anteriormente. Isso irá mudar a vida de ambos, pois em uma das tramas do filme eles irão namorar e casar.
Adam é um veterano dirigente do Partido Comunista que ajudará Witek a subir dentro da burocracia partidária. Isso mostra que o apadrinhamento político era importante na Polônia da época do 'Socialismo Real'. Mas quando o padrinho caía em desgraça os seus protegidos também sofriam as consequências. Assim, o filme de Kieslowski mostra as principais deficiências do regime do 'Socialismo Real' polonês. 
Também vemos outra cena, na qual Witek visita o seu pai, que está internado em um hospital e que se relaciona com uma das enfermeiras. 

Em outro momento, Witek conversa com o seu pai ao telefone e o mesmo o desobriga de fazer a sua vontade, ou seja, de estudar e se formar, obrigatoriamente, em Medicina. Depois, assistimos a uma cena na qual um policial pega Witek urinando, à noite, na estação ferroviária. Witek, em outra cena, comunica ao seu professor que irá parar de estudar Medicina. 

Todas estas cenas duram quase sete minutos. E todas elas estão, de alguma maneira, relacionadas às três histórias que veremos neste filme de Kieslowski.

Primeira história!

Na primeira história, que é a mais longa do filme, Witek sai correndo por uma estação ferroviária, compra a passagem e consegue entrar no trem que o levará até Varsóvia.

Durante a viagem ele acaba conhecendo um dirigente do Partido Comunista (Werner), de quem ele se tornará amigo. Werner é um antigo dirigente comunista que foi preso na época mais dura e repressiva do regime stalinista, no início dos anos 1950, e que ficou manco devido às torturas que sofreu na prisão.
Na primeira história, Czuszka é uma ativista do movimento de Resistência, enquanto Witek é membro do Partido Comunista. Ela será presa em função do seu envolvimento com a oposição, o que irá revoltar Witek. 
Obs3: Nesta época, o governo de Stalin impôs aos países do Leste Europeu a instalação de governos cujos integrantes fossem de uma total lealdade ao governo soviético. Quem não fosse considerado como sendo de absoluta confiança aos olhos do governo da URSS era preso e acusado de inúmeros crimes (espionagem, atividades contra-revolucionárias, sabotagem), mesmo que tais acusações fossem totalmente falsas. E as confissões eram arrancadas sob tortura, física e psicológica, é claro. Um ótimo filme que mostra essa repressão nos regimes stalinistas do 'Leste Europeu' é a 'A Confissão', de Costa-Gavras.

Depois, Werner foi reabilitado e ganhou um apartamento simples, vivendo da ajuda que o governo lhe fornecia. E apesar do que lhe aconteceu na prisão, Werner fazia palestras a jovens dirigentes do Partido Comunista nas quais dizia que acreditava que o regime comunista era o melhor, apesar dos erros que cometia, e que o mesmo teria condições de construir um mundo justo e que essa crença era fundamental para que isso acontecesse. Mas em particular, quando conversa com Witek, ele faz tal afirmação, mas sem muita convicção, adotando uma postura dúbia.

Nesta primeira história, Witek também acaba sendo indicado, por Werner, para procurar por Adam, outro dirigente comunista que foi preso e reabilitado, mas que conseguiu subir dentro da burocracia partidária. E por indicação de Adam, Witek entra para o Partido Comunista. Ele tenta fazer o seu trabalho, de colher informações e reclamações por parte da população e de levá-las até os dirigentes, mas vai percebendo o quanto a burocracia e o partido não se esforçam para resolvê-los, pois isso implicaria, muitas vezes, em reduzir o poder da burocracia partidária sobre o Estado e a Sociedade.
Witek recebe de Werner uma passagem para que possa viajar até Paris. Os funcionários do governo tinham certos privilégios em relação à população em geral, comprando bens de consumo e serviços que as pessoas comuns não tinham acesso. Isso era um dos motivos da insatisfação dos poloneses com o governo do Partido Comunista. 
Adam se apresenta como um líder reformista, que deseja promover mudanças no governo e na sociedade, mas ele afirma que elas somente são possíveis de serem realizadas por 'dentro' do sistema. Quem está 'de fora' não consegue fazer isso. 

Obs4: De certa maneira, o filme de Kieslowski antecipou o governo de Gorbatchev, que de 1985 em diante começou um programa de reformas políticas (Glasnost) e econômicas (Perestroika) que visava modernizar o sistema comunista soviético. 

Assim, um dirigente, um líder do próprio Partido Comunista, liderava um processo de reformas, confirmando o que Adam, personagem de 'Sorte Cega', diz, ou seja, que atuando dentro do sistema ficaria mais fácil modificá-lo. 

Witek acaba sendo escolhido para tratar de uma revolta que é promovida por um grupo de jovens drogados que está internado em um hospital para tratamento de viciados. Tais jovens se rebelaram e prenderam os médicos do hospital em uma jaula, ameaçando matá-los, pois adotam um tratamento muito repressivo.

Os jovens querem o retorno dos antigos médicos, que os tratavam de forma mais liberal, respeitando os seus desejos e interesses. E Witek é enviado para resolver a situação. Ele consegue libertar os médicos presos, impedindo que os mesmos viessem a ser mortos pelos jovens.
Witek revolta-se contra o fato de que uma greve o impede de viajar para a França. 
Este fato pode ser interpretado como uma forma de Kieslowski defender a criação de um governo mais liberal, mais aberto a mudanças e a críticas, para a Polônia. 

Witek também se encontra com uma antiga namorada (Czuszka), dos tempos de ensino médio, com quem ele acaba reatando o relacionamento. Porém, ela está envolvida com atividades do movimento de Resistência e ajuda a elaborar textos e artigos que são divulgados por todo o país.

Witek e a namorada acabam sendo descobertos por Adam e, tempos depois, ela termina sendo presa pela Polícia Secreta. Witek vai atrás de Adam, agredindo ao mesmo, e o acusa de tê-lo usado como informante. Indignado, ele vai embora do apartamento de Werner e tenta reatar o relacionamento com a namorada (Czuszka), mas essa acaba por rejeitá-lo. 

Witek vai até o aeroporto, pois irá viajar em uma missão oficial, mas uma greve o impede de realizar a viagem.

Fim da primeira história.

Segunda história!

Nesta segunda trama do filme de Kieslowski, o início é muito semelhante ao da primeira história, mas com pequenas e sutis diferenças.
Quando prestou serviços comunitários, Witek conheceu Marek, membro do movimento de Resistência, ao qual ele irá aderir. 

Nela, Witek corre em direção a estação ferroviária, para comprar uma passagem para Varsóvia, ele sai em disparada, pois o trem está saindo da estação, derruba o copo de cerveja de um homem, não consegue subir no trem e briga com o segurança do local, que chama a Polícia. 

Com isso, Witek acaba sendo preso, julgado e condenado a prestar 30 dias de serviços comunitários. No local onde presta o serviço, ele acaba conhecendo um jovem militante (Marek) do movimento de Resistência, que luta contra o governo comunista do país. Assim, ele acaba aderindo ao movimento. Witek participa de reuniões, da impressão de panfletos, distribuição de livros clandestinos e de outras atividades. 

O movimento conta com a importante participação de um padre católico (Stefan) e Witek chega a se converter ao Catolicismo e a ser batizado. Witek diz para o padre Stefan que se não tivesse perdido o trem no mês anterior, ele não estaria ali naquele momento e Stefan disse que isso não aconteceu por acaso, mas Witek diz o contrário. 

Assim, enquanto na primeira trama do filme Witek tenta promover mudanças na Polônia atuando dentro do sistema político do país, agora ele vai atuar fora do mesmo.
Na segunda trama do filme, Witek conheceu a bela Vera, com quem ele terá um envolvimento romântico.
Obs5: A Igreja Católica desempenhou um importante papel no apoio ao movimento 'Solidariedade', ainda mais que a Polônia é um país fortemente católico, apoiando greves, protestos e manifestações contra o regime stalinista. Não se pode esquecer que o Papa João Paulo II era polonês e também deu um importante apoio ao 'Solidariedade', contribuindo fortemente para o enfraquecimento e para a derrubada do regime comunista do país. 

Witek promove uma reunião do movimento de Resistência em seu apartamento (que é de sua velha tia, uma esperta e veterana comunista) e reencontra Daniel, aquele garoto que, no início do filme, foi para a Dinamarca. E por meio deste reencontro, ele fica conhecendo a bela Vera, com quem inicia um romance. 

Witek recebe a missão de viajar ao exterior, para um encontro de jovens católicos, mas a Polícia sabe que ele faz parte da Resistência e diz que ele somente irá viajar caso se transforme em um informante da Polícia, o que ele recusa. Assim, ele não irá viajar. 

Witek revê Vera e cita uma série de fatos históricos importantes da Polônia e nos quais os seus antepassados se envolveram: a Rebelião de 1863 (Bisavô), Pilsudisk no Vístula (Avô), Kutrzeba em 1939 e Poznan em 1956 (Pai).
O padre Stefan, que faz parte do movimento de Resistência, tem uma participação importante na segunda história e aparece rapidamente na terceira e última. 

No entanto, Witek acaba sendo perseguido pela Polícia, que descobre o local em que os integrantes do movimento se reuniam. E assim eles acabam sendo presos, com a exceção de Witek. Por isso ele passa a ser considerado suspeito de traição e é expulso da Resistência.

Uma característica do filme de Kieslowski é que personagens que participam de uma das tramas e com as quais Witek interagiu fortemente, em outra história ele tem contatos rápidos (visuais ou conversas passageiras) com os mesmos. Assim, nesta segunda trama ele conversa rapidamente com Werner, que na primeira história foi fundamental para mudar o rumo de sua vida.

E a velha tia comunista ouve, na emissora 'Europa Livre' (que era mantida pela CIA), a notícia a respeito de uma série de greves e protestos que estão acontecendo na Polônia e diz para Witek que tinha sido bom que ele não tivesse viajado.

Fim.

Terceira história!

Na terceira trama do filme, Witek corre para comprar a passagem de trem, empurra o homem que bebe cerveja, mas o copo não cai, ele tenta entrar no trem, mas não consegue.
Vera e Witek se beijam... Mas este romance acontece apenas na segunda trama do filme. 
Com isso, ele acaba encontrando, na estação, a jovem Olga, a mesma estudante de Medicina que se sentiu mal quando viu o corpo de sua ex-professora ser cortado durante uma aula. Ela havia ido até a estação para se despedir dele. E os dois começam a namorar. 

Nesta terceira parte, Witek retoma o curso de Medicina que havia abandonado e conclui o curso, passando a exercer a profissão. Ele e Olga acabam se casando e tendo um filho (além disso, ela ficará grávida de uma menina).

Agora, Witek não tem mais qualquer tipo de envolvimento político, seja a favor do governo (como membro do Partido Comunista), seja contra o mesmo (como membro da Resistência).

Ele é apenas um cidadão que procura agir de forma correta e honesta, bem como construir uma família. E nas oportunidades em que Witek foi convidado para atuar politicamente, ele se recusou a fazer isso. E nesta parte do filme, a tia de Witek é apenas uma boa senhora que ajuda a tomar conta do filho dele. E nesta terceira trama, Witek é ateu.
Na última história do filme, Witek formou-se em Medicina, construiu uma família e adotou uma postura apolítica. 
Apesar de adotar uma postura apolítica, Witek acabará atendendo a um pedido do seu professor, cujo filho foi preso por envolvimento em atividades políticas. O professor quer ir para Varsóvia, a fim de ajudar na libertação do filho, mas ele tem conferências marcadas na Líbia. Ele pede que Witek vá em seu lugar e este acaba aceitando. 

E personagens da história anterior (a segunda) irão aparecer novamente, agora, de forma rápida, caso do padre Stefan, que também está no aeroporto, esperando pelo voo que o levará à Paris. E uma funcionária do aeroporto que apareceu na primeira trama, surge novamente, nesta terceira parte do filme. 

Desta vez, Witek entrará no avião, o que ele não conseguiu nas duas tramas anteriores, mas o mesmo irá explodir em pleno ar, matando os seus passageiros.

Fim.
Na única oportunidade em que Witek conseguiu embarcar no avião, o mesmo explodiu.
Informações Adicionais:

Título: Przypadek (Sorte Cega);
Diretor: Krzysztof Kieslowski;
Roteiro: Krzysztof Kieslowski;
Ano de Produção: 1981 (liberado apenas em 1987 devido à censura); 
País de Produção: Polônia;
Duração: 114 minutos; 
Gênero: Drama Político;
Música: Wjociech Kilar; 
Fotografia: Krzysztof Pakulski;
Elenco: Boguslaw Linda (Witek); Tadeusz Lomnicki (Werner); Zbigniew Zapasiewicz (Adam); Boguslawa Pawelec (Czuszka); Marzena Trybala (Werka ou Vera); Jacek Borkowski (Marek); Jacek Sas-Yhrynowski (Daniel); Adam Ferency (Stefan); Monica Gozdzik (Olga); Zygmunt Hubner (Dziekan); Irena Byrska (Ciotka).

Links:

Informações sobre o filme:

http://www.imdb.com/title/tt0084549/?ref_=nm_flmg_wr_14

Kieslowski: Outra Europa, outros filmes, outros públicos:

https://www.publico.pt/2015/12/05/culturaipsilon/noticia/kieslowski-1716160


Vídeo - Trailer do Filme: 


segunda-feira, 28 de novembro de 2016

'Le Quai des Brumes' (Cais das Sombras): Carné mostra uma França desiludida, enfraquecida e fragmentada em plena era de ascensão do Nazi-Fascismo!

'Le Quai des Brumes' (Cais das Sombras): Marcel Carné mostra uma França desiludida, enfraquecida e fragmentada em plena era de ascensão do Nazi-Fascismo! - Marcos Doniseti!
'Cais das Sombras', de Marcel Carné, é um dos clássicos do Realismo Poético francês da década de 1930. Esse movimento cinematográfico influenciou o Filme Noir (EUA) e o Neo-Realismo italiano.
O Realismo Poético Francês e a França dos anos 1930!

O chamado 'Realismo Poético' foi um movimento cinematográfico que se desenvolveu na França durante a década de 1930. Entre os principais cineastas que são inseridos no gênero temos: Marcel Carné, Jean Vigo, Jean Renoir, Julien Duvivier e Jacques Feyder. 


Para se compreender melhor os filmes deste importante movimento da história do Cinema é importante conhecer o contexto histórico durante o qual o mesmo se desenvolveu. 


Nos anos 1930 tivemos a 'Grande Depressão', que jogou a economia capitalista globalizada na pior crise de toda a sua história, provocando desemprego, pobreza, fome e miséria em grande escala, em todos os países: EUA, Alemanha, Grã-Bretanha, França, Itália, América Latina. As taxas de desemprego dispararam, chegando a 44% na Alemanha e a 33% nos EUA no início de 1933. 

Isso fez com que surgisse uma nova geração de produtores e de cineastas, na França, que passou a realizar uma série de filmes que mostravam a realidade de pobreza, miséria, desespero, injustiças, desilusão e violência que grassava pelo país. 
Jean e Nelly se conhecem e se apaixonam, passando a acreditar que poderiam ser felizes juntos. Nesta cena, Carné parece ter feito uma moldura para ambos. 

Assim, tivemos o início do que se chamou de 'Realismo Poético' e que resultou na produção de inúmeros clássicos do Cinema francês e mundial. Tais filmes exerceram uma significativa influência sobre a produção cinematográfica mundial nas décadas seguintes, tal como se pode comprovar assistindo-se aos filmes do Policial Noir americano (vide a belíssima fotografia deste 'Cais das Sombras') e do Neo-Realismo italiano.


Nos filmes do 'Realismo Poético' francês tudo formava uma unidade: a fotografia, a atuação, os diálogos, a posição das câmeras. 

Além disso, a França da década de 1930 é uma nação fragmentada, desunida, sendo bastante dividida política e ideologicamente, com as forças pró-Fascismo (fascistas, nazistas, monarquistas conservadores, antissemitas) e anti-Fascistas (socialistas, comunistas, anarquistas, radicais, liberais e alguns Conservadores) se enfrentando de forma cada vez mais intensa, algo que também aconteceu em inúmeros outros países. 

Esse processo de divisão e de radicalização política e ideológica acabou dividindo e enfraquecendo a França, que se via cada vez mais ameaçada pelo fortalecimento dos regimes Nazista (Alemanha) e Fascista (Itália), suas rivais diretas na disputa pelo domínio europeu e das colônias. 

E para agravar ainda mais a visão pessimista da vida e do mundo que os filmes do 'Realismo Poético' divulgavam, na vizinha Espanha tivemos a 'Guerra Civil', que levou o general Francisco Franco (aliado de Hitler e de Mussolini) ao poder. 
Dana Andrews e GeneTierney em 'Laura', filme de Otto Preminger, de 1944. 'Laura' foi um dos principais clássicos do Filme Policial Noir, que foi bastante influenciado pelo 'Realismo Poético' francês. 

A 'Guerra Civil Espanhola' gerou uma imensa destruição e provocou a morte de cerca de 400 mil pessoas, terminando com a vitória do General Francisco Franco, vitória essa que foi alcançada, em grande parte, graças ao decisivo apoio dos governos de Hitler e Mussolini, que implantou uma brutal ditadura no país. 


O regime ditatorial franquista somente foi derrubado em 1975, após a morte de Franco, cujo brutal regime de governo matou cerca de 1.600.000 pessoas após o fim da Guerra Civil, fazendo um total de 2 milhões de vítimas durante quase 40 anos (1936-1975).

Além disso, na própria França existia, nesta época, uma parcela significativa da população que nutria uma grande simpatia pelo Nazi-Fascismo, pois o anti-comunismo e o anti-esquerdismo da burguesia e da classe média francesas eram mais fortes do que os temores que elas possuíam em relação às pretensões imperialistas de Hitler e Mussolini. 

Obs1: No Brasil também ocorreu esse processo de radicalização política e ideológica com, por exemplo, os membros da ANL (Aliança Nacional Libertadora), liderada por Luiz Carlos Prestes, enfrentando os militantes integralistas em verdadeiras batalhas de rua. O Integralismo foi a versão brasileira do Nazi-Fascismo e foi liderado por Plínio Salgado, Miguel Reale e Gustavo Barroso. Todas as principais características do Nazi-Fascismo estavam presentes no Integralismo brasileiro: O autoritarismo, a disciplina e a hierarquia rígidas, o anti-semitismo, o culto ao líder, o militarismo, a xenofobia. 
Jean e Nelly vivem breves momentos de felicidade. 

Em 1936 a França chegou a eleger um governo progressista, da chamada 'Frente Popular', tendo um Primeiro-Ministro socialista e judeu (Léon Blum), que promoveu importantes reformas sociais e econômicas: adoção da jornada de 40 horas semanais e do descanso semanal remunerado; nacionalização da indústria de armamentos, entre outras. 


Tais medidas eram inaceitáveis para grande parte das forças direitistas francesas, que eram anti-comunistas e anti-semitas e simpatizavam com o Nazi-Fascismo. Nesta época, as forças direitistas francesas demonstravam tal ódio pelo governo progressista do país que o lema delas era 'Antes Hitler, do que a Frente Popular'. 

A divisão da sociedade francesa em movimentos políticos rivais e a admiração de muitos franceses pelo Nazi-Fascismo acabou enfraquecendo e dividindo o país, permitindo que a França fosse facilmente conquistada pelos nazistas em Maio/Junho de 1940, após uma campanha militar que durou menos de dois meses. 

Enquanto que na Primeira Guerra Mundial os alemães permaneceram por mais de 4 anos lutando dentro do território francês sem que jamais tenham conseguido conquistar o país, na Segunda Guerra Mundial a conquista da França pelos alemães se deu de forma extremamente rápida, o que foi uma surpresa para o próprio Hitler e para os líderes e generais nazistas, devido ao fato de que ela era uma grande potência militar. De fato, a França possuía um Exército melhor equipado e mais numeroso do que a Alemanha Nazista, mas as divisões políticas e ideológicas enfraqueceram o país de tal maneira que a sua derrota se tornou inevitável.  

E alguns dos principais motivos dessa fragorosa e humilhante derrota (que reduziu a França à condição de 'potência de segunda classe' no cenário mundial) já estão presentes nos filmes do 'Realismo Poético' francês, sendo que em 'Cais das Sombras' isso já é bastante evidente. 
Vittel, o bêbado, ao lado amigo Jean, que desertou do Exército Colonial francês que guerreava na Indochina, em frente à miserável pousada de 'Panamá', que lhe deu abrigo e o ajudou.

Fica claro, no filme de Carné, que muitos franceses já não confiam mais em seus líderes, instituições e governantes e que eles preferiam viver à margem da sociedade, apelando até para atividades ilegais e criminosas como forma de sobrevivência. Afinal, os problemas gerados pela Grande Depressão estavam longe de ser resolvidos e os conflitos políticos e ideológicos se intensificaram no país neste período. 


E a visão essencialmente pessimista que os cineastas franceses do 'Realismo Poético' tinham da vida, da sociedade e do mundo fica bem nítida quando um pintor diz para Jean que 'quando vejo alguém nadando, já penso nele como um afogado'. 

Logo, não é à toa que temos, no filme de Carné, toda uma atmosfera sinistra, um clima cinzento, escuro e sombrio, com uma névoa permanente, que ameaça a todos (o Nazi-Fascismo?), bem como vemos o fatalismo dos personagens, que são tristes, infelizes e melancólicos. 

Fica bem evidente que eles desejavam ter uma outra vida, mas sabem que isso não está ao seu alcance e acabam aceitando aquilo que a vida lhes oferece, que é um destino trágico, do qual eles não conseguem fugir, embora procurando, mesmo que em um momento breve e fugaz, vivenciar uma situação de felicidade. 
O desertor Jean e o criminoso Lucien entrarão em conflito em vários momento do filme. E o fim será trágico...

A trama do filme!


A história do filme gira em torno de um soldado (Jean), que desertou do Exército colonial francês e que demonstra não acreditar em mais nada. Daí, ele sai vagando pela França, pegando carona com caminhoneiros e acaba se abrigando em uma pousada isolada e decadente (chamada 'Panamá'), na qual perambulam por ali outras pessoas que são tão solitárias, tristes e perdidas quanto ele, pessoas desiludidas como Jean, que procuram, de certa maneira, beber e se unir, mesmo que de forma breve, para poder continuar vivendo. 

O plano de Jean é ir até o porto de Le Havre e, ali, embarcar em um navio que o leve para fora do país (o destino é a Venezuela), a fim de escapar de uma inevitável prisão, caso ele venha a ser denunciado às autoridades. 

Obs2: O desertor Jean é interpretado por Jean Gabin, que fez muito sucesso em vários filmes da década de 1930 e que muitos consideram como sendo uma espécie de 'Humphrey Bogart francês'.

E mesmo com as pessoas com as quais ele cruza percebendo que Jean é um desertor (afinal ele ainda está usando o seu uniforme), ninguém irá denunciá-lo, pois o desencanto com as instituições e com o rumo do país é algo que afeta a muitos franceses, que foram deixados de lado, abandonados pela sociedade e pelo Estado.  

Desta maneira, Jean irá se encontrar com um bêbado (Vittel), que vive querendo dormir num quarto de hotel que tenha uma cama limpa e arrumada, mas que nunca tem dinheiro suficiente para as duas coisas (beber e dormir) e, assim, ele acaba se limitando a beber. 
Jean quer sair da França e embarcar em um navio com destino à Venezuela. Mas o destino que lhe foi traçado e do qual ele não consegue fugir não permitirá que isso aconteça . 

Vittel é quem conduz Jean a pousada de Panamá, onde ele irá 
conhecer um pintor com vocação suicida e que não tem mais vontade de viver (Michel Krauss), bem como terá contato com outras figuras melancólicas, nebulosas e solitárias que irão cruzar o seu caminho em suas andanças: Panamá, o dono desta 'Pousada das Almas Perdidas', que dá abrigo a pessoas que não tem outro local para viver ou para passar o tempo, sendo que sempre procura ajudá-las de alguma forma (oferecendo abrigo, comida, roupas, dinheiro).

E é na Pousada também que Jean irá conhecer uma bonita jovem (Nelly, interpretada por Michèle Morgan), que atrai a atenção e o interesse de todos, inclusive do próprio Jean, é claro. Nelly é uma jovem de 17 anos, perdida e solitária, e com quem Jean terá um breve romance, permitindo que ele desfrute de alguns momentos de felicidade ao lado dela. Porém, depois, quando eles saem juntos, ela descobre que Jean não tem dinheiro algum e coloca algumas notas no bolso dele.

Obs3: No filme 'Cronaca di um Amore' (de 1950; ele já foi comentado aqui no blog), de Michelangelo Antonioni, também vemos uma cena semelhante, na qual a bela Paola Molon (Lucia Bosé) coloca dinheiro no bolso do casaco de Guido (Massimo Girotti), o homem que ela ama e que também está sem dinheiro algum. Antonioni fez parte do Neo-Realismo italiano, que foi influenciado pelo 'Realismo Poético' francês e em 'Cronaca di un Amore' ele parece ter homenageado o filme clássico de Carné. 

Jean também passará a usar roupas civis e irá adotar uma identidade falsa, passando-se por pintor, a fim de poder sair do país no navio que se encontra no porto de Le Havre. 
As brumas do Nazi-Fascismo cobriam uma parte cada vez maior do território europeu em 1938. A sensação de que uma nova Grande Guerra se aproximava era cada vez mais percebida pelos europeus e esse clima de tragédia que se aproxima é bem evidente neste belo filme de Carné. 

Jean e Nelly se apaixonam, vivenciam momentos felizes e, assim, passam a fazer planos de viver juntos, indo embora da França (para a Venezuela), em um navio, que sairá do porto de Le Havre, mas isso não irá acontecer, pois um destino trágico aguarda Jean.


Jean também acabará entrando em conflito com outras pessoas que desejam possuir a jovem e bonita Nelly, como é o caso do pequeno comerciante Zabel, que é o padrinho dela e que confessará estar apaixonado pela jovem. 

E Zabel também faz negócios nebulosos com alguns gângsters (liderados por Lucien), embora não fique claro que negócios seriam esses (contrabando? talvez, afinal aquela é uma região portuária). 

Lucien e seus comparsas estão procurando por outro criminoso (Maurice) e tentam descobrir, com Zabel, onde o mesmo está, mas não arrancam nenhuma informação dele. Com isso, eles vão até a Pousada, onde Zabel se escondeu, e temos uma troca de tiros com o dono (Panamá), que acaba levando os gângsters a ir embora do local. 

Zabel age como se os gângsters fossem pessoas inferiores, que vinham de boas famílias, mas que seguiram um caminho equivocado na vida (do crime), enquanto que ele seria um homem digno, honrado e respeitável. 

Mas não é bem assim... 
Jean e Nelly: O amor foi o que lhes restou para dar algum sentido às suas trágicas, infelizes e solitárias existências. Michèle Morgan interpreta Nelly, uma jovem de 17 anos, e essa era a sua idade na época em que atuou em 'Cais das Sombras'. 

E o líder deste grupo de gângsters (Lucien, um tipo zombeteiro, bom de conversa, mas que não passa de um covarde) também procura se informar sobre o destino de Maurice com Nelly, que é a ex-namorada do criminoso desaparecido. E é claro que Lucien também irá se interessar por Nelly, levando Jean a reagir, estapeando o líder dos criminosos publicamente. 


Lucien, por sua vez, tenta sempre mostrar que é corajoso e que não tem medo de nada, mas não passa de um medroso. Enquanto isso, Jean demonstra um desinteresse total pela vida, tendo uma permanente expressão de tristeza e de melancolia em seu rosto, mas quando se apaixona por Nelly, ele muda radicalmente, passando a acreditar que poderá vir a ser feliz ao lado dela e que, desta maneira, poderá mudar totalmente a vida que o destino lhe reservou. 

Aliás, somente quando se trata de Nelly é que Jean demonstra possuir algum interesse pela vida, pois se apaixonou pela bonita jovem e é ao lado dela que ele vive aqueles que são os únicos momentos realmente felizes de sua existência.  

Zabel, tal como vários personagens do filme, tenta passar a imagem de alguém que seria uma pessoa dotada de inúmeras virtudes (honestidade, moralidade, bom gosto), que seriam típicas das classes mais abastadas, mas depois descobre-se que ele foi o responsável pela morte de Maurice, o ex-namorado de Nelly. 

Assim, a sua natureza maléfica acaba sendo revelada. E isso ainda é comprovado pelo fato de que ele ainda tentou possuir Nelly à força, o que ela repudiou. E por essa tentativa nefasta, Jean acaba atacando e assassinando Zabel. 

Assim, os protagonistas do filme são pessoas que vivem às margens da sociedade e que não conseguem ascender na vida (afinal, estamos em plena Grande Depressão), e tampouco conseguem realizar os seus sonhos, passando a viver do crime, a beber, a desertar, a sair de casa, a viver uma existência errante, marcada pelo desencanto e pela desilusão, bem como por atividades ilegais e imorais. 
Jean ataca o comerciante Zabel, pois este tentava forçar Nelly a ter relações com ele, mesmo sabendo que ela amava o desertor Jean. 

Tais personagens não acreditam em mais nada e, logo, adotam uma postura niilista de vida, preocupando-se apenas em sobreviver e focando apenas em seus próprios interesses, deixando claro uma nítida influência individualista e existencialista sobre o filme de Carné, cujos diálogos são um dos pontos altos do mesmo.


Outro aspecto interessante do filme de Carné é que se percebe claramente como a vida de todos os personagens está, de alguma forma, conectada: Jean, Nelly, Zabel, Lucien, Maurice, Panamá. E todos eles estão predestinados a uma existência melancólica e a ter um final trágico. Eles tentam evitar esse destino, mas fracassam inteiramente. A felicidade não foi feita para eles. 

Afinal, as brumas (o Nazi-Fascismo) que cobrem Le Havre e envolvem aos personagens irá, em breve, se abater sobre todos. E não há nada que se possa fazer para evitar o destino trágico que os aguarda, bem como à população europeia. 

Assim, o filme de Carné acaba antecipando o estouro do mais brutal e sangrento conflito da história humana, que foi a Segunda Guerra Mundial, que matou 50 milhões de pessoas apenas na Europa. 

Obs4: Afinal, em 1938, o governo de Hitler já havia anexado a Áustria (Março de 1938) e no final de Setembro do mesmo ano ele havia assinado o 'Pacto de Munique', por meio do qual anexou os Sudetos, região mais rica e industrializada da então Tchecoslováquia, garantindo o controle de toda a Europa Central para a Alemanha Nazista. Neste momento, já havia ficado claro para muitos, na Europa, que Hitler nunca iria ficar satisfeito enquanto não dominasse todo o Velho Mundo e que, portanto, uma nova Grande Guerra europeia era inevitável. E é justamente esse clima de pessimismo, tristeza, melancolia e de destino trágico e inevitável que vemos neste clássico filme de Marcel Carné. Sem o entendimento do momento histórico durante o qual o filme foi realizado a compreensão do mesmo torna-se impossível. 
O covarde e criminoso Lucien atira e acaba matando Jean. O desejo deste de ser feliz ao lado de Nelly foi destruído.

Obs5:
Os diálogos do filme foram escritos pelo poeta Jacques Prévert, que participou da elaboração de inúmeros roteiros, ficando famoso em função da sua participação nos filmes do 'Realismo Poético' francês dos anos 1930. 


E no fim o conflito entre o gângster Lucien e o desertor Jean acaba com um resultado trágico para este último, que sonhava em ser feliz ao lado da sua amada, Nelly, mas que termina morrendo nos braços desta, que chora desesperada. 

Fim. 

Obs6: O meu interesse em assistir a este belo filme de Marcel Carné veio da leitura do livro 'E os Hipopótamos foram cozidos em seus Tanques', de Jack Kerouac e William Burroughs. No livro, que li há poucas semanas, Kerouac comenta que assistiu ao 'Cais das Sombras' ao lado de alguns amigos e que um deles chegou a chorar copiosamente ao final do mesmo, dizendo que era o mais belo filme que ele já havia assistido em sua vida. 
Cena mostra o momento em que Jean é baleado e morto pelo gângster Lucien.

Informações Adicionais:


Título: Le Quai des Brumes (Cais das Sombras);
Diretor: Marcel Carné;
Roteiro: Jacques Prévert e Pierre Dumarchais, baseado no romance de Pierre Mac Orlan;
País de Produção: França; Ano de Produção: 1938;
Duração: 92 minutos; Gênero: Policial, Drama, Romance;
Música: Maurice Jaubert; Fotografia: Eugen Schufftan;
Elenco: Jean Gabin (Jean); Michèle Morgan (Nelly); Michel Simon (Zabel); Pierre Brasseur (Lucien, o gângster); Édouard Delmont (Panamá, dono da Pousada); René Génin (Dr. Molêne, o Médico); Roger Legris (Garçom do Hotel); Raymond Amos (Vittel, o bêbado), Robert Le Vigan (Michel Krauss, o pintor suicida). 
Prêmios: Louis Delluc (Melhor Direção para Marcel Carné);
Festival de Veneza: Menção Especial para Marcel Carné. 

Informações sobre o filme:

http://www.imdb.com/title/tt0030643/

O governo da Frente Popular na França:

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/historia/28083/hoje+na+historia+1950+%96+morre+leon+blum+lider+socialista+frances.shtml

Lista de Filmes Noir:

https://ajanelaencantada.wordpress.com/2014/09/14/film-noir/
Nelly beija Jean, segundos antes dele morrer. 

Trailer: