quinta-feira, 3 de outubro de 2019

"Nouvelle Vague" (1990): Godard retrata o fim de uma época histórica, mostra o triunfo de uma Burguesia egoísta e o nascimento de um novo modelo de sociedade e de ser humano!

"Nouvelle Vague" (1990): Godard retrata o fim de uma época histórica, mostra o triunfo de uma Burguesia egoísta e o nascimento de um novo modelo de sociedade e de ser humano! - Marcos Doniseti!
'Nouvelle Vague' (1990): Filme de Godard mostra que, por volta de 1990, tivemos o nascimento de uma nova economia e sociedade de alcance global que, por sua vez, exigia a criação de um novo modelo de ser humano, com valores radicalmente diferentes, marcado pelo individualismo e pelo egoísmo exacerbados. 
O significado do título e uma interpretação para o filme!

"Nouvelle Vague" (Jean-Luc Godard; 1990; 85 minutos)!

"Nouvelle Vague" é o título deste belo filme de Godard, que é pouco comentado, e o mesmo também pode passar aos desavisados uma ideia totalmente equivocada a respeito de quais seriam os temas trabalhados pelo cineasta franco-suíço nesta sua obra.

Segundo o próprio Godard o
filme conta uma história resumida da 'Nouvelle Vague', ou seja, do movimento cinematográfico que se desenvolveu a partir da segunda metade dos anos 1950, que revolucionou o cinema mundial e do qual Godard foi um dos protagonistas, ao lado de Truffaut, Rivette, Chabrol e Rohmer, que eram todos críticos da influente revista 'Cahiers du Cinéma'.

Godard disse que Elena representa a indústria cinematográfica, que se interessa apenas por lucros e que matou o cinema autoral (representado por Roger), mas este voltou (representado por Richard) e conseguiu se impor, vencendo a batalha contra o cinema meramente comercial, que é controlado pelos grandes estúdios e produtores gananciosos. 

No entanto, entendo que, na verdade, o título é absolutamente coerente com uma outra interpretação deste belo filme de Godard, que trata do nascimento, da criação, de um novo tipo de economia, de sociedade e de ser humano, na qual passaram a predominar novos valores dominantes, que são os da Burguesia Neoliberal vitoriosa em sua guerra contra os valores humanistas e coletivistas do Socialismo e do Estado de Bem-Estar Social.

Logo, pode-se afirmar, com base nesta interpretação, que Godard mostra a criação de uma 'Nouvelle Vague', ou seja, de uma nova onda, de um novo momento histórico (econômica, social, cultural, científica, tecnológica) que passou a modificar radicalmente, no mundo inteiro, a própria maneira como tudo estava organizado, incluindo a economia, o sistema político, as relações sociais, alterando até mesmo os valores hegemônicos na sociedade.

E tal como o genial cineasta franco-suíço deixa claro, esse projeto de transformação radical da economia, do Estado e da sociedade exigia a criação de um novo modelo de ser humano e isso precisava ser feito em escala planetária. Tal projeto, como fica claro neste belo filme de Godard, foi comandado pela Burguesia Neoliberal vitoriosa na Guerra Fria, que passou a controlar os cordões dos governos de, praticamente, todos os países a partir dos anos 1990. 
Roger é salvo por Elena em uma cena na qual Godard claramente cita a criação de Adão (ser humano) por Deus tal como foi pintada por Michelangelo na Capela Sistina.

É evidente que quando se trata de um filme de Godard o mesmo pode ser interpretado de várias maneiras. E no caso de 'Nouvelle Vague' (1990) um ponto de vista bastante válido para se analisar e interpretar o mesmo é afirmar que esta obra registra o nascimento do mundo Globalizado, sob o domínio do Capitalismo Neoliberal e Financeiro, e também mostra que este novo mundo necessitava de um novo modelo de ser humano. 

Tal modelo de organização do Estado, da economia e da sociedade se impôs a praticamente todo o planeta a partir do colapso do bloco soviético na Europa e do fim da URSS (1989-1992) e das profundas mudanças que ocorreram nos outros países, em todos os continentes, neste mesmo período histórico, que marcou a transformação dos EUA na única superpotência global, surgindo o que o então presidente dos EUA (George Bush, o pai) chamou de Pax Americana. 

Inclusive, para o Godard, esse desmoronamento do bloco soviético na Europa era um acontecimento comparável ao colapso da Antiguidade Greco-Romana. Essa comparação é válida, pois em ambos os momentos históricos esses colapsos deram origem a novos modelos de organização do Estado, da sociedade e, também, criaram um novo tipo de ser humano. 

Assim, enquanto na Antiguidade o fim do chamado Mundo Antigo vai dar origem ao Feudalismo, no mundo do final do século XX o colapso do chamado 'Socialismo Real' e a crise do 'Estado de Bem-Estar Social' irá resultar na hegemonia global do Capitalismo Neoliberal. 

O filme, o contexto histórico e as referências!

O filme de Godard foi lançado em 1990, época em que o bloco soviético europeu estava desmoronando e a URSS se aproximava do fim. Na época, em função deste triunfo dos EUA na Guerra Fria, o então cientista político Francis Fukuyama chegou a falar que essa vitória representava o 'Fim da História', pois o modelo do Capitalismo Liberal tinha sido vitorioso e não existia outro modelo alternativo que pudesse lhe fazer frente. 

No entanto, a história tomou um outro rumo e o próprio Fukuyama reconheceu o seu equívoco, mas na época muitos intelectuais e lideranças políticas mundo afora concordaram inteiramente com ele.

Desta maneira, Godard mostra o triunfo global de um Capitalismo onde as propriedades das empresas são cruzadas, com muitos acionistas possuindo ações de muitas empresas simultaneamente e nas quais a especulação financeira (com moedas, ações, etc) se tornou a atividade econômica dominante no sistema capitalista.
O executivo PDG explicita a política neoliberal da Burguesia para os trabalhadores, estimulando sentimentos como egoísmo e ganância entre os mesmos.

E no filme vemos Elena quem está comprando 3% das ações da Warner, empresa de mídia, mas os sócios dela se preocupam com o fato de que com esse reduzido número de ações eles não poderão participar das decisões da empresa.

Godard também mostra que esta burguesia triunfante e globalizada se envolve em negócios ilegais, criminosos e violentos (contrabando, guerras, etc), ao mesmo tempo em que adora ostentar os seus carros luxuosos (BMW, Mercedes-Benz, Jaguar, Maserati...). 

Em uma das cenas, inclusive, vemos Elena receber um papel onde está escrito 'Elogio ao Crime'. Enquanto isso, a concentração de renda aumenta fortemente e as desigualdades sociais são cada vez maiores, mesmo nos países ricos. E como diz uma das empregadas de Elena, 'os ricos são diferentes, pois eles tem mais dinheiro'.

O filme também está repleto de, como sempre acontece nos filmes de Godard, inúmeras citações literárias e filosóficas (Dorothy Parker, Friedrich Schiller, Dante, Conan Doyle, Raymond Chandler...), cinematográficas (Robert Aldrich, Luis Buñuel, Joseph L. Mankiewicz) e pictóricas (Van Gogh, Michelangelo, Goya).

E também
temos dois narradores (
um homem e uma mulher) que, tal como ocorre em inúmeras obras literárias, comentam sobre as ações e motivações dos personagens, e que também fazem reflexões sobre as tramas e assuntos do filme.

Temos temos a presença personagens comuns (caso do jardineiro Jules e da empregada Cecile) que, tal como os dois narradores, fazem inúmeras reflexões filosóficas acerca da vida e do sofrimento humano, tal como 'Até o homem nasce na miséria e na adversidade. Porque ele não está acostumado a enganar, fica um pouco mais experiente contra os infortúnios'?.
A bonita e elegante Condessa Elena é herdeira de um conglomerado industrial, mas a sua prioridade é a cotação do Dólar, pois a especulação financeira tornou-se a principal atividade econômica da Burguesia e não mais a produção.

Aliás, o fato de que trabalhadores manuais (um jardineiro e uma garçonete) façam reflexões é uma demonstração clara de que Godard não esqueceu dos ensinamentos de Marx, que dizia que não era a consciência que determinava a vida, mas que era a vida que determinava a consciência. 

Mas o Godard do período que se iniciou com 'Sauve qui peut - la vie' (1980), o filme que marcou o seu retorno ao circuito comercial e aos Festivais, é um cineasta pessimista, que deixou de acreditar na ideia de Revolução Socialista. 

Isso explica porque um outro personagem diz que "Raramente formamos a nossa consciência. Nós apenas nos permitimos tê-la", como se ele estivesse afirmando que os trabalhadores não possuem consciência de classe e, por isso, acabam assimilando, com facilidade, os valores da Burguesia, e também terminam por defender os interesses do Capitalismo. 

Também vemos frases sobre a natureza da realidade, como aquela em que o jardineiro Jules (olhando para o jardim) diz o seguinte: "Toda essa grama: Está dentro de mim? É grama, quando está sem mim? Se ninguém a rotular, não lhe der um nome, o que é a grama então?".

Obs1: Não sei se Godard conhece Física Quântica, mas tudo indica que sim, pois essa reflexão lembra muito o chamado 'Efeito do Observador', que diz que se ninguém estiver observando um fenômeno não poderemos dizer coisa alguma a respeito, nem que o fenômeno existe, nem que ele não existe. Assim, sem que exista alguém para observar e dar um nome para 'a grama', não teremos ninguém para dizer sequer se existe a grama.

E no filme também temos reflexões sobre as complexas relações amorosas existentes entre homens e mulheres, como:

- 'Um homem não é suficiente para uma mulher, ou é demais';
- 'Antes de nos conhecermos já éramos infiéis um para o outro',
- 'As mulheres amam o amor e os homens amam a solidão';
- 'Não podemos nos retirar da vida dos outros e ainda permanecer, nós';
- 'Eles dizem que o amor morre. Não é verdade. Ele não morre, ele o abandona. Ele vai embora'.
O advogado Dorfman defende os valores e interesses da Burguesia especuladora, enquanto que o jardineiro Jules é o trabalhador manual que faz reflexões a partir das suas condições materiais de vida, sendo o personagem marxista do filme. 

No filme também vemos Godard fazer uso incomum dos sons, algo que ele já fazia desde os tempos em que foi integrante do Grupo Dziga Vertov, com frases sobrepostas, falas ditas por personagens que não estão aparecendo na cena, bem como vimos as cores da França (azul, branco e vermelho) em várias oportunidades. 


E a trilha sonora também é usada de maneiras diferentes ao longo do filme. 

Além disso, vimos a repetição de frases, que aparecem no início, mas de maneira incompleta, e que voltam a ser usadas no final, quando elas são faladas integralmente, o que é uma maneira de Godard mostrar que, para ele, uma obra de arte é algo que é construído e que vai se modificando ao longo do tempo. 

Enfim, em 'Nouvelle Vague' também temos o Godard ousado, inovador e experimental de sempre, mostrando que ele nunca se acomodou. Tais características também estiveram presentes em seu mais recente filme ("Le Livre D'Image"; 2018). 

Godard também antecipa o fim da sociedade existente naquele momento, em função das inúmeras mudanças que ocorriam no mundo naquele momento (o fim da URSS aconteceria menos de dois anos depois, em 01/01/1992) e registra o triunfo do Capitalismo Neoliberal, quando um dos narradores diz o seguinte:

"Em breve certas convenções sociais, costumes, princípios, atitudes inatas, irão desaparecer. Podemos considerar como morta a sociedade tal como a conhecemos. As épocas futuras apenas a evocarão como um momento encantador da história. Eles vão dizer: Houve um tempo em que havia ricos e pobres, fortalezas para conquistar, alturas para escalar, tesouros bem conservados para preservar o seu mistério. A sorte estava nos negócios".
Cena noturna de Genebra, onde Godard filmou 'Nouvelle Vague'. Ele viveu grande parte de sua vida ali, antes de ir para a França. Depois ele voltou para viver na bela cidade suíça.

A trama de 'Nouvelle Vague'!

Logo no início de 'Nouvelle Vague' o próprio Godard anuncia qual será a sua intenção com este filme, quando diz o seguinte: "Eu queria que isso fosse uma história. Eu ainda faço isso. Nada do exterior que distraia a memória. Eu mal ouço, de vez em quando, a terra que range suavemente, uma onda que quebra a superfície. Estou satisfeito com a sombra de um único álamo, alto atrás de mim em seu luto". 

Entendo que, com isso, Godard está dizendo que ele irá contar uma história, sim, em 'Nouvelle Vague', e reconhece que acabou por praticamente se isolar de tudo e de todos, retornando para a sua Genebra, onde viveu grande parte de sua vida e para onde voltou já há muitos anos, mas que ainda está observando, sim, o que ocorre pelo mundo afora. os acontecimentos seriam o 'ranger da terra' e a 'onda que quebra a superfície'. 

Então, entendo que Godard está dizendo que, mesmo tendo optado pelo isolamento, ele está atento, sim, aos principais acontecimentos do mundo. E assim, de tempos em tempos, ele volta e faz um filme no qual reflete e questiona os rumos que a humanidade tomou, mostrando os riscos e perigos a que a mesma está exposta. 

A trama do filme é simples: Uma rica condessa italiana, Elena Torlato-Favrini (interpretada por Domiziana Giordano), que é uma orgulhosa e poderosa herdeira e administradora de um grande conglomerado industrial, salva a vida (com um aperto de mãos, o que claramente lembra a Capela Sistina de Michelangelo) de um viajante chamado Roger Lennox (que é interpretado por Alain Delon). Elena acaba levando Roger para a sua mansão, cuida do mesmo e permite que ele passe a morar com ela.
Roger representa o indivíduo que ainda possui valores humanistas e coletivistas e que não se enquadra no novo modelo de economia e de sociedade que a Burguesia Neoliberal está impondo pelo mundo inteiro. Por isso é que ele precisa ser eliminado e substituído por outro modelo de indivíduo (Richard), que assimile os valores e defenda os interesses da Burguesia.

Elena e Roger iniciam um romance, mas depois de um certo período de tempo ela acaba se cansando dele, pois Roger quase não fala e possui uma personalidade apática e submissa, bem como manifesta preocupações humanistas com outras pessoas que, tal como ele diz para Elena, também pensam, sofrem e vivem.


Mas, enquanto isso, Elena pensa apenas nela mesma, o que lhe será dito pelo próprio Roger, cuja origem social, é claro, é de uma família de renda muito inferior à da aristocrática e bilionária Elena. E a própria postura corporal de Roger e de Elena deixam bem claro que eles são de origens (classes sociais) muito diferentes.

Assim, Elena tem o andar orgulhoso e altivo, típico de quem é integrante da classe dominante, enquanto que Roger tem uma postura curvada, de quem sabe que ela é a força dominante na relação deles e de que ele vem de uma classe social 'inferior' aos olhos dela. Essa relação hierarquizada entre ambos fica muito claro, também, em uma cena, quando Elena diz 'música, Roger!' e, daí, ele a obedece de imediato e coloca um disco para tocar.

Em uma outra cena ela está com a perda direita sobre as costas de Roger, que está curvado. Elena também está sempre vestida de forma elegante, usando roupas caras e da moda, enquanto Roger usa roupas informais e baratas (camiseta regata, bermudas).

Sobre a egoísta, insensível e vaidosa Elena, o seu advogado (Robert Dorfman) diz o seguinte: "Elena quer ser conquistada aos seus próprios olhos. Ela reconheceu há muito tempo que a sua natureza era destrutiva. Mas ninguém jamais a conquistou". Ele completa que, para Elena, o sexo é apenas um acessório.
Vários dos personagens aparecem lendo durante o filme, algo comum nos filmes de Godard, que sempre contam com inúmeras referências literárias, cinematográficas, filosóficas e que estão relacionadas ao conceito e trama do filme. Identificar a maneira como elas são usadas é importante para se compreender os filmes do revolucionário cineasta franco-suíço.

Apesar disso, Elena precisa da colaboração de outras pessoas, seus funcionários, a quem pede informações a respeito da cotação do Dólar, querendo saber se o mesmo irá se valorizar ou não, mas ninguém lhe dá uma resposta precisa, o que lhe deixa desesperada. Aliás, é interessante notar qual é a reação de Roger neste momento, que diz para Elena que ela está ganhando um 'dinheiro sujo', que é fruto da especulação financeira.


Desta forma, Godard mostra que a especulação financeira se tornara a principal forma de acumulação de riqueza já naquela época. Assim, a poderosa Condessa Elena representa a nova Burguesia Neoliberal Globalizada que se tornou a força política e social dominante no planeta e que se preocupa apenas com aquilo que é a sua prioridade, ou seja, acumular cada vez mais capital e aumentar cada vez mais o seu prestígio e o seu poder.

E o genial Godard capta e mostra, já naquele momento, que esse novo modelo de Capitalismo Global não irá mais se basear nas atividades produtivas, mas na especulação financeira, com a burguesia negociando cada vez mais com ações, moedas, títulos de dívida (públicos e privados). Para essa Burguesia Financeira o que mais importa é a cotação do Dólar, pois este é que irá determinar, em grande parte, quais empresas terão lucros ou prejuízos, afinal a economia global se organizava em torno da moeda dos EUA.

E nesta nova sociedade, como dizem vários personagens (executivos, advogados) que são ligados profissionalmente à Elena, não existem 'amigos', sendo que um deles também define o novo tipo de Economia Global que se cria naquele momento com a frase 'entramos em um país para criar um mercado, não para explorá-lo'.
Executivos e advogados pressionam Elena para que decida ou não pela aquisição de ações da Warner, afinal eles ganham muito dinheiro quando participam destas fusões e aquisições. Estas se disseminaram pela economia mundial nos anos 1990, aumentando ainda mais o processo de concentração do Capital, fenômeno que foi devidamente explicado por Marx e Engels.

Obs2: Essa frase sobre 'criar um mercado', e não explorá-lo', reflete o pensamento econômico dos anos 1990, quando novos mercados foram incorporados ao Capitalismo Global comandado pelos EUA. Entre estas regiões tivemos a América Latina, China e Ásia (Malásia, Filipinas, Indonésia, Tailândia, Vietnã), Leste Europeu e África, quando tivemos as chamadas 'reformas neoliberais' (baseadas no 'Consenso de Washington'). Estas reformas levaram a um acelerado processo de privatizações, aberturas de mercado, arrocho salarial, reduções de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Tais mudanças impulsionaram o crescimento econômico mundial, mas de forma bastante desigual, e criaram novos mercados que passaram a ser explorados pelas grandes empresas multinacionais dos EUA, UE e Japão, em especial.


E como diz o advogado Dorfman, a busca da felicidade pessoal, de um destino amoroso, não tem nada a ver com a economia e com a indústria, ou seja, com os interesses materiais. É como diz outro personagem: Para o Banco, do qual ele é um empregado, o que importa é o balanço, ou seja, os lucros, não interessando se algum funcionário se chama Robert ou não.

Portanto, para Godard, essa nova economia global neoliberal que está se expandindo para o mundo inteiro naquele momento em que o filme é realizado e lançado (1990), exige um novo tipo de pessoa, de ser humano, com outro comportamento e com valores radicalmente distintos daquelas que existiam até aquele momento.

E a substituição de um tipo de ser humano por um outro (novo) é o tema principal deste filme de Godard, que sempre foi um agudo analista e observador das mudanças pelas quais as sociedades capitalistas desenvolvidas passaram.

Aliás, Godard já havia feito isso logo em seu clássico filme de estreia, um dos mais revolucionários da história do Cinema mundial, que foi 'Breathless'/'Acossado' (1960), no qual mostrou uma França modernizada pelo capitalismo do Welfare-State que havia mergulhado no consumo de massas e na qual novos comportamentos e a força da mídia já eram bastante evidentes.

Assim, aquelas pessoas que, tal como Roger, zombam do dinheiro sujo que é ganho por meio da especulação financeira, que professam valores humanistas e coletivistas e que tampouco contribuem para a geração desse tipo de riqueza financeira, precisam ser descartados e eliminados, para que uma 'Nouvelle Vague', ou seja, uma nova geração possa tomar o seu lugar na sociedade.
O humanista Roger diz para a burguesa Elena que ela pensa apenas nela mesma e que existem outras pessoas no mundo, que pensam, sofrem e vivem. Mas a arrogante Elena diz que não irá amar Roger a não ser que ele mude radicalmente seu jeito de ser, ao que ele responde falando que se ele mudar então deixará de ser quem ele é. A resposta dele é que levou Elena a decidir por eliminar Roger, que morre afogado. 

E é justamente por isso que Elena acaba por matar Roger, pois ele não se enquadra no novo tipo de pessoa que o Capitalismo Global, que triunfou no mundo inteiro, necessita. Além de se preocupar com os outros, Roger ainda zomba de quem especula e, é claro que não existe lugar para pessoas como ele nesta nova economia globalizada e financeira que estimula o individualismo, a indiferença e o egoísmo.

É como disse a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher: 'Não existe sociedade, existe apenas o indivíduo'. É o triunfo dessa ideia, desta visão de mundo, que Godard está mostrando, analisando e criticando em "Nouvelle Vague".

Obs3: Margaret Thatcher (no Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) foram os grandes responsáveis por impor o modelo econômico Neoliberal a todo o mundo em desenvolvimento (América Latina, África, Ásia), bem como a todos os países europeus que haviam abandonado o modelo do chamado 'Socialismo Real' e que necessitavam de acesso a investimentos, empréstimos e tecnologia dos países do Ocidente capitalista (EUA e UE) para que pudessem se desenvolver e se modernizar.

Logo, o que Godard mostra neste belo filme é que aquela Economia Capitalista Global que estava nascendo, em 1990, exigia o fim das antigas relações sociais e, também, do tipo de ser humano que existia até aquele momento, bem como precisa promover a extinção dos valores humanistas e coletivistas que as pessoas defendiam, pois elas ainda eram fortemente influenciadas por ideais de justiça social, de construção de uma sociedade onde todos pudessem viver dignamente.

Portanto, Godard mostra que, para que esse novo modelo de economia e de sociedade triunfasse, era fundamental arrebentar as maneiras antigas de se trabalhar, de pensar e, também, das pessoas se relacionarem, inclusive nas relações amorosas.
A água também é um elemento importante em 'Nouvelle Vague'. No início do filme vimos Roger morrer afogado e, depois, tivemos a substituição dele por Richard. A água simboliza a origem da vida, a transformação, a limpeza. Assim, Roger precisava morrer afogado para que voltasse transformado em Richard, que se livra (é limpo) dos valores humanistas de Roger e transforma-se em um novo indivíduo, que assimilou os valores egoístas da Burguesia. 

Desta maneira, seria possível criar uma nova sociedade e um novo tipo de ser humano, bem como promover a imposição de novos valores, que priorizassem as questões materiais, o individualismo, o egoísmo e a indiferença em relação ao próximo.

E como afirma um empresário no início do filme, esse novo Estado Neoliberal é imoral, pois ele estimula comportamentos, que na visão capitalista seriam inatos ao ser humano, como a indiferença, a desconfiança, o orgulho do poder e o desejo de vingança. E para estimular os trabalhadores a produzir mais, os capitalistas irão lhes oferecer prêmios, pagando melhor para aqueles que trabalharem mais e aumentarem a produtividade. 

Aliás, se analisarmos os dois personagens de Alain Delon no filme, que são Roger e Richard Lennox, veremos que este último é quem incorpora todos estes valores, pois é justamente esse modelo de ser humano que o Capitalismo Global deseja criar. E é por isso mesmo que Richard irá substituir Roger, por meio do assassinato.

Em uma outra cena um personagem diz "O homem que é feito na sociedade, com sucesso no mercado, aceito no exterior, se torna um ceifador em cima de uma mulher'. Logo, o sucesso de um homem na economia fará com que ele se torne, também, a força dominante em uma relação amorosa, à qual irá impor os mesmos valores dominantes na economia.

E foi exatamente isso que aconteceu com Richard Lennox, que foi bem sucedido comandando as empresas do grupo Torlato-Favrini e, desta forma, passou a dominar Elena. Enquanto isso, Roger fracassou e foi eliminado por ela e justamente porque se revelou um fraco, sem capacidade de iniciativa, de se destacar e de dominar.
Para surpresa e irritação de Elena, Richard revela-se alguém com personalidade forte, agressiva, dominante, passando a tomar iniciativas gerir o conglomerado industrial. Ele assimilou os valores da Burguesia arrogante e egoísta para a qual passou a servir. 

Um exemplo da diferença de valores que eles representam ocorre quando Roger (o humanista) e Richard (o egoísta) são perguntados, pelo mesmo personagem (o motorista de Elena), se eles já haviam sido picados por uma abelha morta. Enquanto o humanista Roger sequer compreende a pergunta, o egoísta Richard a entende perfeitamente e a responde, mostrando que havia assimilado perfeitamente os valores desta nova economia e sociedade.


Portanto, é necessário que as outras pessoas perguntem sobre ele, sobre esse homem de sucesso. Logo, é preciso se destacar em sua área de atividade, ter sucesso e mostrar isso para todos, algo que talvez ajude a explicar o interesse popular em torno das chamadas 'celebridades', que são sempre pessoas que se apresentam como sendo ricas, bem sucedidas e felizes.

Com isso, Godard mostra que o tipo de relação econômica que irá predominar na nova economia e sociedade será baseado no individualismo, egoísmo, arrogância, indiferença. E era justamente isso que estava nascendo naquele momento o que, para Godard irá, inevitavelmente, refletir nas relações amorosas e entre as pessoas, que são cada vez mais marcadas por valores materialistas e egoístas.

Assim, o caminho lógico e natural para Elena (e para o Capitalismo Global) era eliminar os seres humanos do tipo 'Roger Lennox' e substituir os mesmos pelos do tipo 'Richard Lennox'.

Desta maneira, Elena acaba se cansando do homem apático, silencioso e desprovido de iniciativa individual que era Roger, que se recusa a mudar. Ela diz que eles começarão a viver quando ele mudar, mas ele diz que se ele mudar então ele não será mais ele mesmo. Logo, Elena deseja fazer com que Roger adote os novos valores e comportamentos que a economia global e financeira exige, mas ele se recusa a fazer isso.
Este é um momento em que vemos uma bela sequência em que a câmera mostrou todos os quartos e salas da residência. Primeiro a câmera foi da esquerda para a direita e as luzes da casa estavam acesas. Quando a câmera volta, uma empregada apaga as luzes dos cômodos. Tal cena representaria o apagamento da memória do Roger humanista e o triunfo do Richard egoísta que, no final, tem Elena com a cabeça deitada em seu peito.

Com isso, ela decidirá eliminar Roger quando, um dia, irão passear em um lago próximo com o mesmo e, daí, ela puxará Roger para que ele caia na água e ainda recusa-se a ajudar o mesmo a voltar vivo para o barco. E como ele não sabia nadar o resultado é que Roger acaba morrendo afogado.

E como a fria e calculista Elena sabia que Roger não sabia nadar, e não fez nada para impedir que ele se afogasse, então temos um claro caso de homicídio. Elena, a capitalista vitoriosa e egoísta, eliminou Roger, destruindo com ele e também com o que ela considerava como sendo suas obsoletas preocupações humanistas e coletivistas.

E pouco tempo depois um homem semelhante a Roger aparece na mansão de Elena e lhe diz que se chama Richard Lennox (que também é interpretado por Alain Delon, é claro) e que seria o irmão gêmeo de Roger.

Richard chantageia Elena, dizendo que sabe o que ela fez ao irmão morto e ameaça denunciar a mesma caso ela não permita que ele passe a morar em sua mansão. Sem opção, Elena acaba aceitando a proposta, talvez pensando que poderá se impor sobre Richard, tal como aconteceu com o falecido Roger.

No entanto, Richard revela-se totalmente diferente do irmão e mostra que possui uma personalidade forte, agressiva e dominante, de característica egoísta e individualista (lembram-se da frase de Thatcher?). Ele consegue, com isso, conquistar o coração da poderosa empresária italiana. Afinal, como Dorfman havia dito para Roger (ou teria sido para o próprio Richard?), Elena era destrutiva e para se impor à mesma era necessário que ela fosse conquistada, o que significa que ela precisava ser dominada.

Assim, gradualmente, Richard passa a administrar as empresas do grupo, tomando o lugar de Elena como o principal gestor.
Richard torna-se a personalidade dominante na sua relação com Elena.

Portanto, Richard é totalmente diferente do irmão, sendo autoconfiante e mostrando ser capaz de iniciativas ousadas, fazendo com que a empresa invista fortemente em novas e sofisticadas tecnologias (na área nuclear). Ele também mostra que sabe o que é necessário para fazer com que a empresa tire proveito das oscilações das moedas internacionais, principalmente do Dólar.

Desta forma, Roger passa a ser o principal nome do conglomerado industrial (Torlato-Favrini) e isso leva a que Elena lhe diga que ele 'roubou' a sua existência, pois a vida dela, anteriormente, girava em torno disso, administrando as empresas da família com imenso prazer.

E próximo do final do filme vemos um cena que mostra o quando a relação de Elena com Richard era muito diferente daquela que teve com Roger, sendo que na mesma ela se abaixa para amarrar os sapatos de Richard, o que mostra que a hierarquia entre eles é exatamente a contrária daquela que existia entre Elena e Roger.

No início, quando Richard apareceu em cena passou a existir uma forte suspeita de que, na verdade, Richard seria o próprio Roger, que teria conseguido se salvar quando caiu no lago e que, agora, teria voltado para se vingar da mulher que teria tentado lhe matar, se impondo sobre a mesma.

E no final Richard é quem irá levar Elena para um passeio de barco... Mas será que o suposto Richard irá se vingar dela, que foi a responsável pela morte de Roger? Ou ainda, será que Richard é, na verdade, Roger?
Richard pula ao mar, para nadar, e chama Elena, que recusa. Quando ele volta para o barco, coloca a sua mão direita sobre a mão esquerda dela, que a retira na sequência, talvez com medo de que ele a puxe para o mar.

Esse mistério eu não irei revelar, é claro. Mas o que realmente importa não é saber se Roger é Richard ou não, mas que o antigo modelo de ser humano (Roger) foi substituído por um novo (Richard), que se adaptou perfeitamente ao novo modelo de economia e de sociedade que está se impondo sobre todo o planeta.

No entanto, Godard avisa, por meio da presença de nuvens bastante escuras, que um futuro tenebroso aguarda a humanidade com esse triunfo de uma Burguesia especuladora, egoísta e prepotente. E se analisarmos o que aconteceu no planeta após 1990 quem poderá dizer que Godard estava errado? Na verdade, ele novamente teve a capacidade de enxergar melhor e mais longe do que todos, antecipando muitos dos acontecimentos futuros. 

Assim, e tal como o fez em muitos filmes de sua longa e fantástica carreira, que sempre estiveram conectados com o que acontece no planeta (vide 'A Chinesa', sobre o Maoísmo, e 'Weekend', sobre a exploração neocolonial do então chamado 'Terceiro Mundo'), em 'Nouvelle Vague' o visionário Godard consegue mostrar que o processo de mudanças radicais que ocorria no mundo por volta de 1990 iria provocar efeitos altamente negativos, apontando quais seriam as principais consequências que seriam geradas por elas.

Aliás, este é o mesmo modelo de economia e sociedade que está enfrentando, neste momento, uma grave crise, o que Godard também tem mostrado em todos os seus filmais recentes, como o fez em 'Notre Musique' (2004) e no mais recente 'Le Livre D'Image' (2018). Portanto, os alertas e as críticas que Godard aponta em 'Nouvelle Vague' foram, com certeza, proféticos. Ele acertou em cheio, mais uma vez.
Se no início do filme a relação entre Elena e Roger era marcada pela submissão deste último à figura dominante da poderosa Condessa, no final o que vemos é a inversão da hierarquia entre eles. Assim, ela chega ao ponto de amarrar os sapatos dele.

Basta ver que o cenário mundial que se configurou a partir de 1990 e que é marcado por claro colapso ambiental (de alcance global), inúmeras Guerras mundo afora (Iraque, Síria, Líbia, Afeganistão, Iêmen), o crescimento da Islamofobia e do Terrorismo, que são alguns dos assuntos abordados criticamente por Godard em suas obras mais recentes.

A reunificação alemã, por sua vez, foi abordada por Godard em 'Alemangne 90 neuf zero' (1991) e as guerras nos Balcãs (ex-Iugoslávia; Bósnia) e na Palestina foram abordados em filmes como 'For Ever Mozart' (1996) e 'Notre Musique' (2004).

Portanto, 'Nouvelle Vague' é mais um dos inúmeros filmes realizados em sua fantástica trajetória em que Godard usa do seu talento e da sua lucidez para alertar a humanidade, em especial os seus governantes mais poderosos e influentes, dos problemas que enfrentamos e avisar que precisamos fazer algo para corrigir o rumo que a mesma escolheu.

A importância das mãos em 'Nouvelle Vague'!

Uma das coisas que mais me chamou a atenção neste belo filme de Godard foi a maneira como ele se utilizou das mãos, que possuem uma função muito importante na trama, sendo que isso ocorre em vários momentos deste filme. Na verdade, a maneira como Godard fez uso das mãos é que explica e resume o que é este filme. E é justamente isso que irei procurar demonstrar a partir de agora. 

'Nouvelle Vague' é considerado um filme 'difícil' por muitas pessoas, pois exige muito esforço para que ele possa ser compreendido. Mas entre ser um filme difícil e um filme hermético, ou seja, que ninguém entende, vai uma gigantesca distância. 
Deus criou Adão à sua imagem e semelhança. Em 'Nouvelle Vague' o genial Godard mostra que a Burguesia Financeira fez o mesmo, pois percebeu que precisa criar um ser humano que assimilasse os mesmos valores dela. 

Assim, no início do filme, vemos a Elena salvar a vida de Roger, ao qual ela quase atropelou e matou, quando ele, caído ao chão, estendeu a sua mão para o alto, como que pedindo a ajuda dela, para que salvasse a sua vida, o que ela acabou fazendo, levando o mesmo para a sua mansão e cuidando dele.

Inclusive, no momento em que Roger levanta o braço para o alto, Elena une a sua mão com a dele, em uma cena que é claramente inspirada na pintura da Capela Sistina, feita por Michelangelo, quando Deus criou Adão, considerado o primeiro ser humano, e unem as suas mãos.

Mais adiante no filme vemos as mãos serem usadas em momentos que precedem a algumas falas mais reflexivas, ou filosóficas, de alguns personagens, caso do jardineiro, que sempre que faz alguma reflexão está usando as mãos para trabalhar no jardim da mansão de Elena. Assim, o trabalho do jardineiro é que o leva a refletir, o que é uma maneira de Godard mostrar que ainda não abandonou a visão marxista, que diz que "Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência". 

A garçonete também faz uma reflexão sobre Schiller (da obra 'Escrúpulos e Consciência') logo depois de ter se atrapalhado quando servia algumas pessoas no restaurante, ou seja, quando não soube fazer uso adequado das suas mãos.
Elena levanta o braço para o alto, repetindo o gesto de Roger no início do filme. Ela está se afogando e, neste momento, ainda não sabemos se Richard irá salvar a mesma.

E é claro que Roger e outros personagens estão sempre usando as mãos para ler, tocar piano, ver fotografias e imagens, escrever... 

As mãos também são fundamentais quando, mais para o final do filme, Richard Lennox leva Elena para um passeio de barco. Em um primeiro momento ele vai nadar e quando está voltando ao barco acaba colocando a sua mão direita sobre a mão esquerda de Elena. Ela retira a sua mão, talvez com receio de que Richard se vingue da morte do irmão (ou mesmo que ele seja o próprio Roger). 

Logo depois, Richard usa a sua mão esquerda para jogar Elena ao mar, o que ela não queria. Ela pede ajuda para voltar ao barco estendendo a sua mão para o alto e, no último momento, quando ela estava prestes a se afogar, Richard usa a mão direita para salvar a vida de Elena. 

Em outra cena, também no final do filme, vemos Elena usar as suas mãos para amarrar os sapatos de Richard, em um claro sinal de reconhecimento de que ele é a força dominante na relação entre eles. E mais para o fim, quando Elena vê que Richard está usando uma corrente no pescoço, que é semelhante à que Roger usava, ela conclui que Richard é, de fato, Roger. 

E daí o Richard/Roger levanta a sua mão direita para o alto e diz 'É você' e quando a abaixa ele fala 'Sou eu', com essa cena representando a união definitiva entre Elena e Richard/Roger. 
A mão direita de Richard se estende, em uma cena muito rápida, e salva a vida de Elena.

E como eu afirmei que a minha linha de interpretação para este filme é fundamentada na ideia de que Godard procurou demonstrar que a nova economia Capitalista Global Financeirizada, que se desenvolve a partir dos governos de Thatcher e Reagan e que impôs ao mundo inteiro a partir de 1989/1990, exige a criação de um novo modelo de indivíduo, que assimile os valores do Neoliberalismo, o que foi exatamente que aconteceu com Roger/Richard. 

Logo, essa cena acaba por resumir a trama de todo o filme. 

Então, essa última cena pode ser interpretada de uma maneira em que ela representa a união definitiva entre Elena e Roger, ou seja, entre a Burguesia Financeira que triunfou e dominou o mundo nos anos 1990, e o novo tipo de ser humano que ela criou e que acabou incorporando e assimilando todos os valores do Neoliberalismo, como o individualismo, o egoísmo, a ganância e a ambição desmedida, que são os valores da Burguesia Financeira. 

Assim, o que Godard  mostra em 'Nouvelle Vague' é que da mesma forma que Deus criou Adão (o ser humano) à sua imagem e semelhança, a Burguesia Financeira (Elena) também criou Richard Lennox à sua imagem e semelhança. Assim, a burguesa Elena pegou a argila (o Roger humanista) e o transformou em Adão (o Richard egoísta e ambicioso). 

Foi para promover essa transformação de Roger em Richard que ela teve que matar o primeiro. É por isso que a narradora do filme diz "Eu não o machuquei. Eu tive que fazer o que fiz. Você sabe disso". 

Portanto, está explicada a cena da união das duas mãos (de Roger e Elena) no início do filme e está, também, explicada a cena do final em que Richard levanta a sua mão direita para dizer 'É você'. E quando ele abaixa a mão, Richard completa a frase dizendo 'Sou eu'.
Richard levanta a mão direita e diz 'É você'. E quando a abaixa ele fala 'Sou eu'. Claro, afinal o Criador está sempre em uma posição mais elevada em relação à Criatura.

Isso talvez explique porque o narrador do filme (o próprio Godard?) diz o seguinte: "Era como se eles já tivessem vivido tudo isso. Suas palavras pareciam imobilizadas nos rastros de outras palavras de outros tempos. Eles não prestaram atenção ao que fizeram, mas para a divisão que coloca as ações de hoje no presente e ações paralelas no passado. Eles se sentiram altos, imóveis, sobre eles o passado e o presente. Ondas idênticas no mesmo oceano.".

Neste momento Richard deixa claro que Elena é que está no alto, pois foi ela que o criou, à imagem e semelhança dela, com os mesmos valores que ela possui. Eles são apenas um. Na obra de Michelangelo, na Capela Sistina, em que Deus cria Adão, ocorre a mesma coisa. O Todo-Poderoso está no alto e Adão fica logo abaixo, em uma posição clara de inferioridade. O criador (Elena) e a sua criatura (Richard). 

Portanto, o início do filme explica o final e o final explica o início. 

O círculo se fechou. O círculo está completo. 

Afinal, são ondas idênticas no mesmo oceano...

Godard é Gênio!

Obs: Viram como os filmes do Godard podem até ser difíceis de ser compreendidos, mas não tem nada de herméticos? 
'Está Consumado'. Sim, a Burguesia venceu e criou um novo indivíduo, à sua imagem e semelhança, que ela tanto desejava, e foi justamente por isso que ela triunfou. E tal como diz outra frase que aparece no final (com um fundo também negro): 'O Amor Vence'. Sim, claro, mas não é o amor romântico, aquele que não tem nada a ver com a economia e com a indústria, mas o Amor do Criador (Elena) por sua Criatura (Richard), pois eles são semelhantes e se reconhecem como tal.  
Informações Adicionais!

Título: Nouvelle Vague;
Diretor: Jean-Luc Godard;
Roteiro: Jean-Luc Godard e Jacques Audiberti;
País de Produção: 
Ano de Produção: 1990;
Duração: 85 minutos;
Gênero: Drama;
Direção de Arte: Anne-Marie Miéville;
Fotografia: William Lubtchansky;
Elenco: Alain Delon (Richard e Roger Lennox); Domiziana Giordano (Elena Torlato-Favrini); Christophe Odent (Raoul Dorfman); Roland Amstutz (Jules Duborgel); Laurence Côte (Cecile); Violaine Barret (Yvonne); Laurence Guerre (Della); Laure Killing (Dorothy Parker).

As nuvens escuras que aparecem no final do filme mostram que Godard não era nada otimista com o futuro da humanidade. Ele acertou em cheio, pois atualmente estamos enfrentando uma série de crises intensas, incluindo guerras, desigualdades sociais e colapso climático.

Links:

Neoliberalismo trata as pessoas como mercadoria:

http://www.justificando.com/2016/08/06/no-neoliberalismo-pessoas-sao-tratadas-como-mercadoria/

Francis Fukuyama e 'O Fim da História' - A História venceu!
https://exame.abril.com.br/revista-exame/a-historia-venceu/

A ascensão da Globalização Neoliberal e a sua crise:
https://www.publico.pt/2016/11/16/mundo/opiniao/o-fim-da-globalizacao-neoliberal-1751392

Dani Rodrik - O Neoliberalismo e a sua falha fatal: 
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/O-neoliberalismo-e-sua-falha-fatal/7/38939

Mundo entrou no cheque especial dos recursos naturais:
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/entramos-no-cheque-especial-dos-recursos-ambientais-e-muita-gente-nem-se-deu-conta/

Por que a Guerra no Afeganistão se tornou a mais longa já travada pelos EUA: 
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/09/09/por-que-a-guerra-no-afeganistao-se-tornou-a-mais-longa-ja-travada-pelos-eua.ghtml

A nova desordem financeira:
https://diplo.org.br/2006-10,a1423
Alain Delon, Jean-Luc Godard e Domiziana Giordano no Festival de Cannes, em 1990, quando do lançamento do filme 'Nouvelle Vague'.

Ataques a duas mesquitas deixam 50 mortos na Nova Zelândia:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/03/14/policia-e-acionada-apos-relatos-de-tiros-em-mesquita-na-nova-zelandia.ghtml

A ideologia alemã:
http://revistaprincipios.com.br/artigos/95/cat/724/a-ideologia-alemã-.html

Por que Bush Jr. foi reeleito?
https://teoriaedebate.org.br/2004/12/19/por-que-george-w-bush-ganhou/

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