domingo, 18 de agosto de 2019

História do Cinema: Como a geração Sexo, Drogas e Rock'n'roll salvou Hollywood!

História do Cinema: Como a geração Sexo, Drogas e Rock'n'roll salvou Hollywood! - Marcos Doniseti!

Livro de Peter Biskind: 'Como a Geração Sexo-Drogas-Rock'n'roll salvou Hollywood'.

"Como a geração Sexo-Drogas-Rock'n'Roll Salvou Hollywood", de Peter Biskind, é um ótimo livro, que estou lendo agora e que mostra a emergência de uma Nova Geração em Hollywood, a partir da segunda metade da década de 1960, que foi resultado da influência diretamente exercida pela Nouvelle Vague (francesa, em especial) e pela Contracultura.

Esse processo acabou resultando na criação do único movimento de Cinema Autoral da história dos EUA até aquele momento e que foi chamado de 'Nova Hollywood', o que era uma forma de colocar o mesmo em oposição com a 'Velha Hollywood', dos grandes estúdios e dos atores e atrizes da geração anterior.

Até aquele momento acreditava-se que a presença das grandes 'Estrelas' de Hollywood nos filmes garantiria o sucesso de bilheteria destas grandes produções que eram lançadas, anualmente, pela Warner, MGM, Universal, Paramount, Fox e Disney.

Mas a partir da segunda metade da década de 1960 essas grandes produções começaram a fracassar em sequência e mesmo a presença das populares 'Estrelas' nas mesmas mostrava-se insuficiente para atrair o público, que estava passando por grandes mudanças, com uma nova geração de espectadores (os 'Baby Boomers') querendo assistir algo bem diferente daquilo que se via até então.
'Todos os Homens do Presidente' (Alan J. Pakula; 1976).

Esta nova geração, de cineastas e de público, possuía interesses e valores culturais muito diferentes daqueles da geração anterior, que lutou na Segunda Guerra Mundial.


Isso ficou claro com a emergência da Contracultura, do Rock, do Psicodelismo, dos Hippies, das gigantescas manifestações contra a Guerra do Vietnã, do Movimento Estudantil, do Feminismo, da luta pelos Direitos Civis, contra o Racismo, dos Panteras Negras e com o surgimento de novos líderes (Martin Luther King Jr, Malcolm X, Jerry Rubin...), com o nascimento dos grandes festivais (Monterey, Woodstock, Ilha de Wight). 

Foram esses sucessivos fracassos e a percepção de que as grandes produções, com grandes 'Estrelas', eram algo ultrapassado e não tinham mais o mesmo público de antigamente que colocaram vários dos grandes estúdios em uma situação precária, próximos da falência, o que foi o caso da Paramount, por exemplo.

As mudanças que ocorreram em Hollywood tiraram dos produtores o controle total da produção dos filmes, transferindo grande parte deste controle para os novos e jovens cineastas que eram defensores de um Cinema Autoral. Isso também acabou atraindo alguns veteranos, tal como Robert Altman, que já era um cineasta autoral antes mesmo da Nova Hollywood aparecer mas que não tinha espaço na época da hegemonia da Velha Hollywood. 
'Encurralado' (Steven Spielberg; 1971).

Essa situação abriu espaço para a emergência de uma nova geração de cineastas, tais como Francis F. Coppola, Martin Scorsese, William Friedkin, Steven Spielberg, George Lucas, Peter Bogdanovich, Mike Nichols, Brian de Palma, Paul Schrader, e, como já comentei, também o veterano Robert Altman. 

Aliás, Altman já era um cineasta autoral antes mesmo de surgir o movimento da 'Nova Hollywood', mas ele não tinha espaço para as suas produções, e quando o movimento passou a ter força em Hollywood ele teve condições, finalmente, de começar a produzir e a realizar seus filmes, embora nunca tenha deixado de entrar em conflito com os produtores.

Assim, a geração chamada de 'Nova Hollywood' provocou uma profunda mudança na maneira de se fazer filmes nos EUA. E com isso tivemos a criação de um verdadeiro Cinema Autoral nos EUA, que dominou a produção cinematográfica em Hollywood no período que vai, essencialmente, de 1968 a 1980.

Tais cineastas reinventaram o Cinema produzido nos EUA e fizeram realizaram excelentes filmes de todos os gêneros possíveis, como o terror, ficção científica, romances, dramas, fantasia, comédias, aventuras, policiais, documentários (um dos documentaristas mais importantes, que foi o D.A. Pennebaker, que faleceu há poucos dias, inclusive).
A Conversação (Francis F. Coppola; 1974).

Além de uma nova geração de cineastas extremamente talentosos e criativos a 'Nova Hollywood' também gerou o aparecimento de inúmeros rostos novos, incluindo atores (Jack Nicholson, Gene Hackman, Dennis Hopper...) e atrizes (Jane Fonda, Cybill Shepherd, Jodie Foster...) que irão se tornar as novas Estrelas de Hollywood.

A 'Nova Hollywood' também permitiu a emergência de produtores que ou eram novos ou que já trabalhavam em Hollywood (como Bert Schneider) mas que perceberam que a velha maneira de se fazer as coisas não funcionavam mais e que era preciso mudar radicalmente o processo produtivo na 'Meca do Cinema' dos EUA. 

E é bom ressaltar que essas mudanças profundas que aconteceram no cinema de Hollywood foram possíveis porque, além de novos rostos na direção, produção e interpretação, nós também tivemos uma crise profunda e que atingiu em cheio aos grandes estúdios de Hollywood durante a década de 1960. 

Esta crise chegou ao seu auge nos últimos anos da década, ou seja, no exato instante em que uma nova geração se formava e que não escondia o seu desejo e determinação de mudar como o negócio do Cinema funcionava em Hollywood.
'Taxi Driver' (Martin Scorsese; 1976).

Desta maneira, em função da profunda crise criativa e financeira na qual os grandes estúdios mergulharam, os grandes estúdios e os produtores foram praticamente forçados a abrir espaço para as mudanças que eram defendidas pelos membros da chamada 'Nova Hollywood' em favor de um Cinema Autoral, embora esse processo tenha sido marcado por muitos conflitos entre os membros da 'Velha' e da 'Nova' Hollywood.  

E tudo isso que ficamos sabendo por meio deste ótimo livro vem acompanhado de inúmeras histórias picantes dos bastidores, com o autor relatando inúmeros fatos sobre quem transava com quem, quem traía quem, quem usava drogas, quem dava as melhores festas de arromba (com muito Sexo, Drogas e Rock'n'roll, é claro) e quem era 'malucaço' (Hopper é imbatível neste quesito).

Recomendo.

Os cineastas da 'Nova Hollywood' produziram uma vasta filmografia. Abaixo publico uma relação, que não é completa, mas que reúne 55 dos principais filmes que foram realizados por eles.
'Sem Destino' (Dennis Hopper; 1969).


Lista de Filmes - Nova Hollywood!

1) Bonnie and Clyde - (Arthur Penn; 1967);

2) The Graduate (A Primeira Noite de um Homem; Mike Nichols; 1967);

3) Faces (Rostos; John Cassavetes; 1968);

4
) Easy Rider (Sem Destino; Dennis Hopper; 1969);

5) The Wild Bunch (Meu Ódio Será Sua Herança; Sam Peckinpah; 1969); 

6) Bob, Carol, Ted & Alice (Paul Mazursky; 1969);

7) M.A.S.H. (Robert Altman; 1970);

8) Five Easy Pieces (Cada um Vive Como Quer; Bob Rafelson; 1970);

9) Little Big Man (Pequeno Grande Homem; Arthur Penn; 1970); 

10) Husbands (Os Maridos; John Cassavetes; 1970);

11) The Last Picture Show (A Última Sessão de Cinema; Peter Bogdanovich; 1971);

12) The French Connection (Operação França; William Friedkin; 1971);

13)
Duel (Encurralado; Steven Spielberg; 1971); 
A Última Sessão de Cinema (Peter Bogdanovich; 1971).

14) THX 1138 (George Lucas; 1971);

15) Straw Dogs (Sob o Domínio do Medo; Sam Peckinpah; 1971);

16) Klute (Klute - O Passado Condena; Alan J. Pakula; 1971);

17) Minnie and Moskowitz (Assim Falou o Amor; John Cassavetes; 1971);

18) The Godfather (O Poderoso Chefão; Francis F. Coppola; 1972);

19) Sisters (Irmãs Diabólicas; Brian de Palma; 1972); 

20
) Badlands (Terra de Ninguém; Terrence Malick; 1973);

21)
Mean Streets (Caminhos Perigosos; Martin Scorsese; 1973);


22) American Graffiti (Loucuras de Verão; George Lucas; 1973);

23) The Exorcist (O Exorcista; William Friedkin; 1973);

24) The Godfather (O Poderoso Chefão; Francis F. Coppola; 1974);

25) Alice Doesn't Live Here Anymore (Alice Não Mora Mais Aqui; Martin Scorsese; 1974);

26) The Conversation (A Conversação; Francis F. Coppola; 1974);

'O Franco Atirador' (Michael Cimino; 1978).

27) Phantom of the Paradise (O Fantasma do Paraíso; Brian de Palma; 1974);

28) The Parallax View (A Trama; Alan J. Pakula; 1974);

29)
Paper Moon (Lua de Papel; Peter Bodganovich; 1974);

30) The Sugarland Express (A Louca Escapada; Steven Spielberg; 1974); 

31) A Woman Under the Influence (Uma Mulher sob Influência; John Cassavetes; 1974);

32)
Jaws (Tubarão; Steven Spielberg; 1975);


33) Night Moves (Um Lance no Escuro; Arthur Penn; 1975);

34) Nashville (Robert Altman; 1975);

35) Taxi Driver (Martin Scorsese; 1976);

36) All The President's Men (Todos os Homens do Presidente; Alan J. Pakula; 1976);

37) Carrie (Carrie - A Estranha; Brian de Palma; 1976);

38) Obsession (Trágica Obsessão; Brian de Palma; 1976);

39) Close Encounters of Third Kind (Contatos Imediatos do Terceiro Grau; Steven Spielberg; 1977);
'American Graffiti' (George Lucas; 1973).

40) The Sorcerer (O Comboio do Medo; William Friedkin; 1977);

41) Star Wars IV (George Lucas; 1977);

42) Opening Night (Noite de Estreia; John Cassavetes; 1977);

43) An Unmarried Woman (Uma Mulher Descasada; Paul Mazursky; 1978);

44) Coming Home (Amargo Regresso; Hal Ashby; 1978);

45) The Deer Hunter (O Franco Atirador; Michael Cimino; 1978); 

46)
Blue Collar (Vivendo na Corda Bamba; Paul Schrader; 1978);

47) Days of Heaven (Cinzas no Paraíso; Terrence Malick; 1978);

48) Apocalypse Now (Francis F. Coppola; 1979);

49) Hardcore (Paul Schrader; 1979);

50) Dressed to Kill (Vestida para Matar; Brian de Palma; 1980);

51) Raging Bull (Touro Indomável; Martin Scorsese; 1980);

52) Heaven's Gate (O Portal do Paraíso; Michael Cimino; 1980);
'Operação França' (William Friedkin; 1971).

53) Cruisin (Parceiros da Noite; William Friedkin; 1980);

54) Glória (John Cassavetes; 1980);

55) Blow Out (Um Tiro na Noite; Brian de Palma; 1981).

sábado, 3 de agosto de 2019

História do Cinema: O Realismo Poético Francês dos anos 1930! - Marcos Doniseti!

História do Cinema: O Realismo Poético Francês dos anos 1930! - Marcos Doniseti!
Cena de "L'Atalante", dirigido por Jean Vigo, produção de 1934, que é considerado o filme que deu início ao 'Realismo Poético Francês'.

O Contexto Histórico!

O chamado 'Realismo Poético Francês' foi um dos principais e mais influentes movimentos da história do Cinema e se desenvolveu na década de 1930, especialmente entre 1934 e 1940, ou seja, no período que antecede a invasão da França pela Alemanha Nazista e que resultou na mais humilhante derrota militar francesa de sua história.

Essa produção cinematográfica também se confunde com a ascensão do governo da chamada 'Frente Popular', que venceu a eleição nacional em 1936 e que reunia radicais, socialistas e comunistas. Este governo promoveu significativas reformas sociais e econômicas que beneficiaram aos trabalhadores e aos pobres. 

Portanto, para se compreender melhor os filmes deste importante movimento da história do Cinema é importante conhecer o contexto histórico durante o qual o mesmo se desenvolveu. 

A Grande Depressão e a emergência da Alemanha Nazista!

Nos anos 1930 tivemos a 'Grande Depressão', que jogou a economia capitalista globalizada na pior crise de toda a sua história, provocando desemprego, pobreza, fome e miséria em grande escala, em todos os países: EUA, Alemanha, Grã-Bretanha, França, Itália, América Latina. As taxas de desemprego dispararam, chegando a 44% na Alemanha e a 33% nos EUA no início de 1933.

E um dos resultados desta Grande Depressão foi a ascensão de Adolf Hitler e dos nazistas ao poder na Alemanha, a nação com a economia mais industrializada da Europa e que não contava com um Império Colonial, tal como acontecia com a França e com a Grã-Bretanha. A Itália Fascista, liderada por Benito Mussolini, também desejava fazer da sua nação um poderoso Império Colonial. 
"A Grande Ilusão" (1937) é um clássico de Jean Renoir que avisou que teríamos uma nova e brutal Guerra na Europa.

Os franceses sabiam das pretensões imperialistas dos Nazistas alemães e dos Fascistas italianos e tinham consciência de que isso jogaria a Europa em uma nova e brutal Guerra.

Foi nesse contexto histórico, de grande sentimento de pessimismo em relação ao futuro imediato, que levou ao surgimento de  fez uma nova geração de produtores e de cineastas, na França. Eles passaram a realizar uma série de filmes que mostravam a realidade de medo de uma nova guerra europeia, bem como de pobreza, miséria, desespero, injustiças, desilusão e violência que grassava pelo país. 


A divisão política, o governo da Frente Popular na França e a Guerra Civil Espanhola!

Além disso, a França da década de 1930 é uma nação fragmentada, desunida, sendo bastante dividida política e ideologicamente, com as forças pró-Fascismo (fascistas, nazistas, monarquistas conservadores, antissemitas) e antifascistas (socialistas, comunistas, anarquistas, radicais, liberais e alguns Conservadores moderados) se enfrentando de forma cada vez mais intensa, algo que também aconteceu em inúmeros outros países (Espanha, por exemplo).

Esse processo de divisão e de radicalização política e ideológica acabou dividindo e enfraquecendo a França, que se via cada vez mais ameaçada pelo fortalecimento dos regimes Nazista (Alemanha) e Fascista (Itália), suas rivais diretas na disputa pelo domínio europeu e das colônias na África e na Ásia. E isso ajuda a explicar esse clima generalizado de pessimismo e de fatalidade que temos nos filmes do 'Realismo Poético'. Uma guerra brutal se aproximava e as pessoas viam isso como inevitável.

E para agravar ainda mais a visão pessimista da vida e do mundo que os filmes do 'Realismo Poético' divulgavam, na vizinha Espanha tivemos uma violenta e brutal 'Guerra Civil' (1936-1939), que levou o reacionário general Francisco Franco (aliado de Hitler e de Mussolini) ao poder. 

'Hotel do Norte' (1938), que é o segundo filme da 'Trilogia da Fatalidade' de Marcel Carné. Dos três este foi o único em que Jean Gabin não foi o protagonista.


A 'Guerra Civil Espanhola' gerou uma imensa destruição e provocou a morte de cerca de 500 mil pessoas (outras estimativas falam em até 1 milhão de mortos), terminando com a vitória do retrógrado e genocida General Francisco Franco.

Essa vitória de Franco foi alcançada, em grande parte, graças ao decisivo apoio dos governos de Hitler e Mussolini. Depois, Franco implantou uma brutal ditadura no país, que durou até 1975, quando o Caudilho reacionário e genocida finalmente morreu e a Espanha voltou a ser um país democrático (em 1975), acabou se integrando à União Europeia (em 1986) e, desta maneira, pôde se desenvolver econômica e socialmente em um ambiente de respeito às liberdades.

Além disso, a vitória de Franco, na Espanha, fortaleceu ainda mais as ambições imperialistas da Itália Fascista e da Alemanha Nazista e representou uma clara derrota para o governo progressista da 'Frente Popular' na França, que tentou ajudar ao governo Republicano, democrático, da 'Frente Popular' espanhola, mas isso foi prejudicado pela radicalização política e ideológica que ocorreu na própria França e pelas pressões do governo conservador da Grã-Bretanha.

Desta maneira, a derrota do governo Republicano espanhol e a ascensão de Franco enfraqueceram as forças democráticas e progressistas da França e aumentou ainda mais o pessimismo dos franceses em relação ao seu futuro, o que se refletiu nas produções do 'Realismo Poético' francês.

Além do mais, na própria França existia, na década de 1930, uma parcela significativa da população que nutria uma grande simpatia pelo Nazifascismo, pois o anticomunismo, o antissemitismo e o antiesquerdismo da burguesia e das classes médias francesas eram mais fortes do que os temores que elas possuíam em relação às pretensões imperialistas de Hitler e Mussolini.

Em 1936 a França chegou a eleger um governo progressista, da chamada 'Frente Popular', tendo um Primeiro-Ministro socialista e judeu (Léon Blum), que promoveu importantes reformas sociais e econômicas, tais como a adoção da jornada de 40 horas semanais, do descanso semanal remunerado e a nacionalização da indústria de armamentos.

"A Regra do Jogo" (1935), de Jean Renoir, é um dos filmes mais importantes do 'Realismo Poético Francês' e mostra uma visão bastante crítica da burguesia francesa. 


Tais medidas eram inaceitáveis para grande parte das forças direitistas francesas, que eram anticomunistas e antissemitas e que simpatizavam com o Nazifascismo. Inclusive, nesta época, as forças direitistas francesas demonstravam tal ódio pelo governo progressista do país que o lema delas era 'Antes Hitler, do que a Frente Popular'.

A divisão da sociedade francesa em movimentos políticos rivais e a admiração de muitos franceses pelo Nazifascismo acabou enfraquecendo e dividindo o país, permitindo que a França fosse facilmente conquistada pelos nazistas alemães em Maio/Junho de 1940, após uma campanha militar que durou menos de dois meses.

Enquanto que na Primeira Guerra Mundial os alemães permaneceram por mais de 4 anos lutando dentro do território francês sem que jamais tenham conseguido conquistar o país, na Segunda Guerra Mundial a conquista da França pelos alemães se deu de forma extremamente rápida.

Aliás, isso foi uma surpresa para o próprio Hitler e para os líderes e generais alemães, devido ao fato de que a França era uma grande potência militar. De fato, a França possuía um Exército melhor equipado e mais numeroso do que o da Alemanha Nazista, mas as divisões políticas e ideológicas enfraqueceram o país de tal maneira que a sua derrota se tornou praticamente inevitável.

E alguns dos principais motivos dessa fragorosa e humilhante derrota (que reduziu a França à condição de potência de segunda classe no cenário mundial) já estão presentes nos filmes do 'Realismo Poético Francês', sendo que em um filme como 'Le Quais des Brumes' ('Cais das Sombras') isso já é bastante evidente. 
Cena de 'A Última Cartada' (1934), filme dirigido por Jacques Feyder. A atriz Marie Bell interpretou duas personagens (Florence e Irma).

O Realismo Poético e as suas origens!

Assim, foi neste contexto histórico que tivemos o início, a partir de 1934, do que se chamou de 'Realismo Poético' e que resultou na produção de inúmeros clássicos do Cinema francês e mundial. Aliás, notem que o início do 'Realismo Poético' se dá logo após a ascensão de Hitler e dos nazistas ao poder na Alemanha, em Janeiro de 1933. 

E isso não é mera coincidência.

Afinal, os filmes produzidos na França neste período retrataram o temor de uma nova guerra na Europa, pois a política dos regimes nazista e fascista, na Alemanha e na Itália, era claramente imperialista, visando transformar estas nações em grandes potências. E por isso ambos os governos, de Hitler e Mussolini, faziam a defesa da guerra como principal instrumento para atingir tais objetivos.

Além disso, a França sofreu fortemente as consequências da 'Grande Depressão', pois os governos do país não deram prioridade para combater os efeitos da mesma, dando maior importância para manter a moeda do país valorizada, o que beneficiava a burguesia. Essa política econômica prejudicou fortemente a competitividade da produção francesa e fez a economia do país amargar um longo período de recessão, levando a manutenção de uma elevada taxa de desemprego durante toda a década de 1930.

Para muitos o marco inicial do Realismo Poético foi o filme "L'Atalante" (1934), de Jean Vigo, que mostra a vida de um casal de origem popular em sua lua-de-mel pela cidade de Paris.

Os filmes do 'Realismo Poético' exerceram uma significativa influência sobre a produção cinematográfica mundial nas décadas seguintes, tal como se pode comprovar assistindo-se aos filmes do Policial Noir americano (vide a belíssima fotografia do 'Cais das Sombras') e também os filmes do Neorrealismo Italiano.

Aliás, essa influência do 'Realismo Poético' francês sobre o Neorrealismo Italiano foi reforçada pela presença de Luchino Visconti, que chegou a trabalhar como assistente de Jean Renoir no filme 'Toni' (1935).
'Cais das Sombras' (Marcel Carné; 1938), que conta com Jean Gabin e Michèle Morgan como os protagonistas da história. Eles foram dois dos mais importantes atores da história do cinema francês.

Os filmes do Neorrealismo Italiano também mostravam a realidade do seu povo a partir de Julho de 1943, quando o regime Fascista de Mussolini foi derrubado e tivemos o início de uma brutal Guerra Civil, que vai durar até o final de Abril de 1945, quando a Guerra chegou ao final na Europa com a derrota final do Nazifascismo, depois que tivemos muito sangue derramado. Somente na Europa morreram cerca de 50 milhões de pessoas, sendo 27 milhões na URSS e 6 milhões na Alemanha.

O 'Realismo Poético', as suas principais características e a sua derrocada!

Nos filmes do 'Realismo Poético Francês' tudo formava uma unidade: a iluminação e as sombras, o trabalho dos atores e atrizes, os diálogos, a posição e o movimento das câmeras. Portanto, havia um grande cuidado com a qualidade da produção e, assim, promovia-se uma certa estetização da realidade social francesa. 

Logo, o objetivo dos filmes do 'Realismo Poético' não era tanto mostrar a realidade 'nua e crua'', mas captar a essência desta realidade, que aparecia sob uma forma lírica e estetizada, sendo que os filmes eram realizados em estúdios, em um clima de pessimismo, desilusão, nostalgia e amargura, sentimentos comuns em uma França que via a sua influência e o seu poderio diminuírem e com a nação sendo cada vez mais ameaçada por seus inimigos (Alemanha Nazista e Itália Fascista).

Os seus principais cineastas foram Jean Vigo, Jean Renoir, Marcel Carné, Julien Duvivier, Jacques Feyder, Marc Allégret e Jean Gremillón. E as estrelas que atuaram com frequência em tais filmes foram Jean Gabin, Michel Simon, Louis Jouvet, Arletty, Simone Signoret, Michèle Morgan, Dita Parlo, Annabella, Simone Simon e Jules Berry. 

Algumas das principais trilhas sonoras dos filmes foram de autoria de Maurice Jaubert (que chegou a trabalhar com Truffaut mais tarde), Georges Auric, Joseph Kosma e Arthur Honegger. E entre os principais diretores de fotografia nós tivemos Jules Kruger, Eugen Schuffan, Claude Renoir e Curt Courant.

O "Realismo Poético" também valorizou a função dos roteiristas, graças à adoção de técnicas originárias da Literatura, que ganharam grande importância quando o Cinema superou a sua fase 'muda' e tivemos a adoção do cinema sonoro ou falado.
'Pépé le Moko' (1937), dirigido por Julien Duvivier, teve Jean Gabin como protagonista, ao lado da bela Mireille Balin, atriz que era muito popular na França dos anos 1930, mas um intenso romance com um oficial nazista durante Segunda Guerra Mundial arruinou a sua carreira.
E como não existiam, ainda, roteiristas profissionais, os diretores convidavam escritores, jornalistas ou poetas para escrever os roteiros. Os casos maiss conhecidos são os de Jacques Prévert e Charles Spaak, que escreveram os roteiros da maioria das principais obras do 'Realismo Poético'. 

A fotografia dos filmes era marcada por uma escuridão, pela presença de brumas, predominando os cenários noturnos, o que estava ligado à narrativa caracterizada pelo trágico, amargo, nostálgico e pessimista das suas histórias. 

Fica claro, nos filmes do 'Realismo Poético', que muitos franceses já não confiam mais em seus líderes, instituições e governantes e que eles preferiam viver à margem da sociedade, apelando até para atividades ilegais e criminosas como forma de sobrevivência.

Afinal, os problemas gerados pela Grande Depressão estavam longe de serem resolvidos e os conflitos políticos e ideológicos se intensificaram no país neste período.

A visão essencialmente pessimista que os cineastas franceses do 'Realismo Poético' tinham da vida, da sociedade e do mundo fica bem nítida quando, em 'Cais das Sombras', um pintor diz para Jean (personagem de Jean Gabin) que 'quando vejo alguém nadando, já penso nele como um afogado'.

Logo, não é à toa que temos, nos filmes do 'Realismo Poético', toda uma atmosfera sinistra, um clima cinzento, escuro e sombrio, com uma névoa permanente, que ameaça a todos (o Nazifascismo?).
'Cais das Sombras' (1938), dirigido por Marcel Carné, é considerado um dos grandes clássicos do cinema francês e mundial. O filme conta uma história com um clima de desilusão, com pessoas solitárias, pobres, amarguradas e pessimistas, o que é ilustrado perfeitamente pelas brumas que estão presentes do início ao fim.

Nestes filmes, também vemos o fatalismo dos personagens, que são tristes, infelizes e melancólicos e que se conformam com aquilo que o destino lhes reservou. Fica bem evidente que essas pessoas, marginalizadas e perseguidas, desejavam ter uma outra vida, mas elas sabem que isso não está ao seu alcance.

Os personagens têm uma visão fatalista da vida, vivendo à margem da sociedade, seja como membros desempregados da classe trabalhadora, prostitutas, pequenos gângsters, operários miseráveis explorados, trabalhadores informais e mal remunerados, enfim, do chamado 'lumpenproletariado'.

Desta maneira, elas acabam aceitando aquilo que a vida lhes oferece, que é um destino trágico, do qual eles não conseguem fugir, embora tentem, mesmo que em um momento breve e fugaz, vivenciar uma situação de felicidade. Logo, os finais felizes não estão presentes nos filmes do 'Realismo Poético', ao contrário do que acontecia nos filmes de 'Hollywood'. 

Aliás, o belíssimo 'Le Quai des Brumes' ('Cais das Sombras'; 1938) foi considerado um filme tão triste e pessimista por muitos políticos e militares franceses que estes passaram a dizer que se a França fosse derrotada na Guerra a culpa seria do filme...

O 'Realismo Poético' francês chegou ao fim quando a França foi invadida, derrotada e ocupada pela Alemanha Nazista e isso comprovou, de certa maneira, que os filmes do movimento revelaram proféticos quanto ao futuro pessimista que eles mostravam, pois o clima de desilusão, divisão  política e social e a fraqueza dos franceses que os filmes retratavam na época acabaram antecipando este resultado. 

Com isso, muitos dos seus principais profissionais (diretores, atores, atrizes...)acabaram saindo da França, indo fazer filmes na Inglaterra ou nos EUA, levando ao fim de um dos mais belos momentos da história do Cinema mundial. 
'Trágico Amanhecer', produção de 1939, encerrou a 'Trilogia da Fatalidade' de Marcel Carné. O filme mostra a exploração que os trabalhadores sofriam e a vida miserável que levavam em uma França que caminhava para uma derrota humilhante na Segunda Guerra Mundial.

Lista de filmes do 'Realismo Poético'!

1 - L'Atalante (Jean Vigo; 1934);

2 - A Grande Cartada (Jacques Feyder; 1934);

3 - A Bandeira (Julien Duvivier; 1935);

4 - Le Dernier Tournant (Pierre Chenal; 1935);

5 - Toni (Jean Renoir; 1935);

6 - Pension Mimosas (Jacques Feyder; 1935);

7 - A Quermesse Heróica (Jacques Feyder; 1936);

8 - O Crime do Sr. Lange (Jean Renoir; 1936);

9 - Jenny (Marcel Carné; 1936);

10 - Camaradas (Julien Duvivier; 1936);

11 - Les Bas-Fonds (Jean Renoir; 1936);
'La Bandera' (1935), dirigido por Julien Duvivier, mostra um Jean Gabin (sempre ele...) interpretando um legionário que acaba se casando com uma mulher marroquina, que é interpretada por Annabella. 

12 - O Demônio da Algéria (Julien Duvivier; 1937);

13 - Gula de Amor (Jean Grémillon; 1937);

14 - Um Carnê de Baile (Julien Duvivier; 1937);

15 - A Besta Humana (Jean Renoir; 1938):

16 - Povo Errante (Jacques Feyder; 1938);

17- A Grande Ilusão (Jean Renoir; 1938);

18 - Cais das Sombras (Marcel Carné; 1938);

19 - Hotel do Norte (Marcel Carné; 1938);

20 - Entrée des Artistes (Marc Allégret; 1938);

21 - Pecadoras de Túnis (Pierre Chenal; 1938);

22 - Trágico Amanhecer (Marcel Carné; 1939);

23 - A Regra do Jogo (Jean Renoir; 1939);

24 - O Boulevard do Crime (Marcel Carné; 1945);

25 - Os Portões da Noite (Marcel Carné; 1946).

Links:

O Trágico no Realismo Poético Francês: