Quando Godard e Glauber Rocha trabalharam juntos e debateram sobre os rumos do Cinema! - Marcos Doniseti!
Godard, ao fundo, e Glauber Rocha durante as filmagens de 'Vento do Leste', filme da fase em que Godard foi integrante do 'Grupo Dziga Vertov', que ele criou junto com Jean-Pierre Gorin em 1968. |
O Grupo Dziga Vertov - Origem e Objetivos!
Em 1970, quando Jean-Luc Godard fazia parte do Grupo Dziga Vertov, o gênio maior do cinema brasileiro, Glauber Rocha, foi convidado a participar do filme 'Vento do Leste', que foi dirigido por Godard e Gorin.
O 'Grupo Dziga Vertov' foi criado por Godard e Jean-Pierre Gorin em 1968 e tinha o objetivo de produzir filmes de forma coletiva e com finalidades revolucionárias, o que acabou não dando certo. O grupo era, de fato, uma unidade de produção de filmes que visava, nas palavras de Godard, fazer não apenas filmes políticos, mas filmar politicamente.
A tentativa de produzir filmes de maneira coletiva, em que todos os participantes do filme teriam direito a dizer como ele deveria ser realizado, não deu certo pois as discussões começavam e não paravam mais. Daí não se fazia filme algum.
Com isso, Godard e Gorin decidiram assumir o controle e passar a realizar os filmes eles mesmos, embora a direção e o roteiro fossem assinados em nome do Grupo Dziga Vertov.
Nesta época, Godard e Gorin realizaram cinco filmes de maneira conjunta, sendo que os créditos dos mesmos foram dados ao 'Grupo Dziga Vertov', que foram:
- "Le Vent d'Est" (Vento do Leste; 1970);
- "Lotte in Itália" ('As Lutas Ideológicas na Itália; 1971;
- "Vladimir et Rosa" (Vladimir e Rosa; 1971)
- "Tout va Bien" (Tudo vai Bem; 1972);
- "Letter to Jane: An Investigation About a Still" (Carta para Jane; 1972).
Alguns autores também consideram que os filmes 'Um Filme Como os Outros' (1968), 'British Sounds' (1970) e 'Pravda' (1970) também seriam do 'Grupo Dziga Vertov'.
No entanto, o primeiro filme que foi realizado após a formação do 'GDV' foi o 'Vento do Leste' (1970), embora alguns dos membros do 'Grupo Dziga Vertov' tenham participado destes três filmes, o que é o caso do próprio Godard, que participou da realização dos três.
'Um Filme Como os Outros' (1968) é, de fato, um filme de Godard, mas este não assinava mais a autoria dos seus filmes, que eram atribuídos a um coletivo. Segundo a estudiosa Jane de Almeida (da PUC-SP) o filme é, na verdade, um precursor do 'Grupo Dziga Vertov', pois ao mesmo é atribuída uma autoria coletiva e o filme possuía propósitos revolucionários, tais como os filmes que foram realizados pelo 'GDV'.
'British Sounds' (1970) por sua vez, foi resultado da colaboração entre Godard e Jean-Henri Roger, outro integrante do 'Grupo Dziga Vertov', enquanto que 'Pravda' (1970) é fruto do trabalho conjunto entre Godard, Henri-Roger e Paul Burron. Aliás, este filme foi realizado de maneira clandestina, na Tchecoslováquia, em Junho de 1969, ou seja, poucos meses depois do país ter sido invadido pelas tropas do 'Pacto de Varsóvia', que colocaram fim à experiência democrática e liberal da chamada 'Primavera de Praga'.
Os filmes dessa fase do 'Grupo Dziga Vertov' não eram exibidos no circuito comercial, embora o caso de 'Vento do Leste' (1970) tenha sido diferente, pois ele foi exibido na chamada 'Quinzena do Realizador', no Festival de Cannes, em 1970, mas isso aconteceu à revelia de Godard, sendo que a iniciativa de promover a exibição foi do distribuidor do filme.
Assim, Godard e Gorin promoviam exibições dos filmes principalmente em sindicatos e universidades, pois o público alvo deles eram os operários e os estudantes, aos quais pretendiam mobilizar para que promovessem uma Revolução.
Portanto, o 'Grupo Dziga Vertov' era uma tentativa de dar continuidade à aliança que se formou, na França, entre os dois segmentos, na época do 'Maio de 68', quando estudantes e operários, de várias tendências ideológicas, paralisaram o país por várias semanas e quase derrubaram o governo de Charles de Gaulle por meio de uma Greve Geral. Na época até mesmo o Festival de Cannes foi interrompido, o que aconteceu graças à atuação de Godard, Truffaut, Saura, Polanski, Lelouch, Léaud, entre outros.
Pôster de propaganda divulgando a 'tour' de Godard e Gorin na Grã-Bretanha para promover o filme 'Tout Va Bien', de 1972. |
Aliás, foi por isso mesmo que, no 'Grupo Dziga Vertov', esta pluralidade ideológica estava presente, com o grupo possuindo membros que eram maoístas (casos de Godard e Gorin), anarquistas libertários (Daniel Cohn-Bendit) e até integrantes ligados a Partidos Comunistas tradicionais. Estes foram os casos de Gian Maria Volonté, ligado ao PCI (Partido Comunista Italiano,) que participou de 'Vento do Leste' (1970), e de Yves Montand, ligada ao PCF (Partido Comunista Francês), que participou do 'Tout va Bien' (1972).
Um fato que não é muito conhecido na trajetória de Godard e Gorin nesta fase é que eles chegaram a assinar um contrato para fazer propaganda de uma loção de barbear para TV ('Schick After Shave'; 1971), pois necessitavam de dinheiro para financiar os seus projetos. A atriz Juliet Berto, que trabalhou em vários filmes de Godard ('Duas ou Três Coisas que eu sei sobre Ela', 'A Chinesa', 'Weekend') participou da propaganda (ver o vídeo abaixo).
Porém, eles usaram a propaganda para defender a causa dos Palestinos, a respeito do qual eles chegaram a fazer um documentário ('Até a Vitória'), que não foi finalizado naquele momento (1970), em função da violenta repressão desencadeada pelo governo da Jordânia, mas que Godard incluiu em um filme posteriormente, que foi o 'Ici et Ailleurs' ('Aqui e em Qualquer Lugar'; 1976).
Segundo o livro 'Grupo Dziga Vertov', organizado por Jane de Almeida quando da realização de uma Mostra dos filmes dessa fase da carreira de Godard e de Gorin pelo Centro Cultural Banco do Brasil, e que ocorreu em 2005, os dois gênios, o francês e o brasileiro, tiveram longas conversas e Glauber deu um verdadeiro curso intensivo sobre o Tropicalismo para Godard e Gorin.
Godard orienta Glauber sobre a cena que irão filmar em 'Vento do Leste', cujas filmagens se realizaram na Itália entre Junho e Julho de 1969. |
A produção de 'Vento do Leste' e as divergências entre Glauber e Godard!
A iniciativa de realizar 'Vento do Leste' (1970) foi de Godard que, logo após os levantes do 'Maio de 68', inicialmente convidou o líder estudantil anarquista Daniel Cohn-Bendit, um dos principais líderes estudantis das manifestações do 'Maio de 68' francês, para fazer um filme sobre a questão política e ideológica na França do Pós-Guerra.
Mas, segundo Gorin, a iniciativa de convidar Glauber para participar de 'Vento do Leste' foi dele. As filmagens de 'Vento do Leste' se realizaram na Itália, entre Junho e Julho de 1969, onde Glauber se encontrava naquela época. Glauber e Godard conversaram bastante e se despediram de forma amigável mas, na época, eles divergiram totalmente sobre quais eram os rumos que o Cinema deveria tomar.
Assim, enquanto o cineasta francês estava rompendo com o cinema comercial e cortando laços com a indústria cinematográfica, Glauber defendia que fosse construído no Brasil uma indústria própria e independente para o Cinema, com forte apoio do Estado, financiando, produzindo, distribuindo e exibindo filmes nacionais para o público brasileiro. Glauber falava em 300 cineastas brasileiros produzindo 600 filmes anualmente para que fossem exibidos ao povo brasileiro.
Mesmo com as divergências entre eles isso não impediu que eles conversassem bastante e que Glauber participasse de 'Vento do Leste' (1970). Aliás, a própria participação de Glauber em 'Vento do Leste' ocorreu em função dessa divergência entre os dois cineastas.
Desta maneira, na cena da qual Glauber participa ele está em pé, em uma encruzilhada, com os braços abertos.
Com o braço esquerdo, Glauber aponta para um caminho que representa o cinema do então chamado 'Terceiro Mundo', que seria "um cinema perigoso, do divino e maravilhoso, o cinema da opressão, do consumo imperialista, é o cinema da repressão fascista, do terrorismo... é um cinema que vai construir tudo, a técnica, as casas de projeção, a distribuição, os técnicos, 300 cineastas por ano fazendo 600 filmes para todo o Terceiro Mundo...".
Com o braço esquerdo, Glauber aponta para um caminho que representa o cinema do então chamado 'Terceiro Mundo', que seria "um cinema perigoso, do divino e maravilhoso, o cinema da opressão, do consumo imperialista, é o cinema da repressão fascista, do terrorismo... é um cinema que vai construir tudo, a técnica, as casas de projeção, a distribuição, os técnicos, 300 cineastas por ano fazendo 600 filmes para todo o Terceiro Mundo...".
Já o braço direito de Glauber apontava para outro caminho, o do cinema dos países do chamado 'Primeiro Mundo', com suas preocupações priorizando questões filosóficas e ideológicas, que seria o cinema desconhecido, o cinema da aventura, mostrando a sua visão crítica em relação ao mesmo. Logo depois vemos uma narração, com a visão de Godard, dizendo que a estratégia revolucionária defendida por Glauber carecia de bases teóricas.
Então, ficava claro que cada um deles tinha um projeto de Revolução em mente, mas que eles tomavam caminhos totalmente diferentes, o que foi mostrado nesta cena em que Glauber participou. Essa sempre foi uma característica de Godard, ou seja, usar de elementos da sua vida pessoal e pública em sua obra cinematográfica.
Assim, em vários filmes dele tivemos cenas em que casais brigam ou se desentendem e que foram baseadas nos relacionamentos de Godard com as mulheres com as quais ele se envolveu romanticamente e com as quais ele chegou a se casar (Anna Karina e Anne Wiazemsky).
Um exemplo disso é que no filme 'A Chinesa' (1967) temos uma cena na qual a personagem Veronique (Anne Wiazemsky) diz para Guillaume (Jean-Pierre Léaud) que não o ama mais. Segundo a atriz Anne Wiazemsky, que interpretou Veronique, ela tinha falado a mesma coisa para o Godard na noite anterior, quando tiveram uma discussão, e a cena foi feita no mesmo local em que a briga dela com o Godard aconteceu, pois o 'A Chinesa' foi filmado no apartamento do casal, em Paris.
Portanto, os dois grandes gênios do cinema francês e brasileiro conversaram bastante e se respeitaram, mas cada um deles tinha as suas próprias ideias e, assim, seguiram por rumos diferentes, pois eram cineastas e intelectuais comprometidos com a transformação revolucionária das sociedades nas quais viviam.
Mas como as realidades concretas das sociedades que eles desejavam revolucionar eram muito diferentes e como eles defendiam projetos radicalmente diferentes de transformação revolucionária, é claro que cada um deles acabará adotando estratégias distintas de atuação.
Com isso, eles irão seguir com as suas próprias ideias, carreiras e projetos, o que foi sintetizado por Godard nesta cena de 'Vento do Leste' do qual Glauber Rocha participou.
Links:
Godard, o Grupo de Dziga Vertov e a decisão de fazer filmes politicamente:
Propaganda feita por Godard de uma marca de loção de barbear feita em 1972 e na qual ele defende a luta dos Palestinos:
Godard, o Dziga Vertov e o comercial para loção de barbear:
http://www.openculture.com/2011/07/jean-luc_godards_after-shave_commercial.html
Resenha - Bluray com os cinco filmes da fase Dziga Vertov:
https://www.slantmagazine.com/dvd/godard-gorin-five-films-1968-1971/
Yves Montand e a sua ligação com o PCF:
https://www.universalis.fr/encyclopedie/yves-montand/2-les-souvenirs-et-les-regrets-aussi/
Palestra de Jean-Pierre Gorin no CCBB em 2005:
https://www.youtube.com/watch?v=vx3YGpSjcdQ&t=3937s
Propaganda feita por Godard para a TV (1971):
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