quinta-feira, 22 de novembro de 2018

'Hôtel du Nord': Carné deu continuidade à 'Trilogia da Fatalidade' com um novo clássico sobre o pessimismo e a tragédia na França dos anos 1930! - Marcos Doniseti!

'Hôtel du Nord': Carné deu continuidade à 'Trilogia da Fatalidade' com um novo clássico sobre o pessimismo e a tragédia na França dos anos 1930! - Marcos Doniseti!
'Hôtel du Nord' é uma produção de 1938, tendo sido realizado logo após o clássico 'Le Quai des Brumes' (Cais das Sombras). A sua atmosfera pessimista e melancólia reflete o estado de espírito dos franceses nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, na qual a França foi facilmente derrotada e conquistada pela Alemanha Nazista.  

O Contexto Histórico!

Este belo filme de Marcel Carné faz parte do ciclo do chamado 'Realismo Poético Francês', que foi um dos principais e mais influentes movimentos da história do Cinema e que se desenvolveu na década de 1930, especialmente entre 1934 e 1940, ou seja, no período que antecede a invasão da França pela Alemanha Nazista e que resultou na mais humilhante derrota militar francesa de sua história.

'Hôtel du Nord' deu continuidade ao que poderíamos denominar de 'Trilogia da Fatalidade', que começou com um dos maiores clássicos do Cinema mundial, que foi 'Le Quai des Brumes' (Cais das Sombras, de 1938, que já foi comentado aqui no blog) e que foi concluída com mais uma obra genial, o também belo 'Le Jour Se Lève' ('Trágico Amanhecer', de 1939).

Em dois destes três filmes tivemos Jean Gabin na condição de protagonista e Jacques Prévert como roteirista. 'Hôtel du Nord' é o único dos três em que isso não aconteceu, o que não impediu que também se tornasse um clássico. 

A expressão 'Trilogia da Fatalidade', que utilizei para me referir a esses três clássicos de Carné, deve-se ao fato de que existe, sem dúvida alguma, uma conexão entre essas belas obras do genial cineasta francês, que é o sentimento de tristeza, melancolia, pessimismo e de fatalidade que está presente em todos.
Renée e Pierre sentados no banco da praça localizada em frente ao 'Hôtel du Nord', com uma expressão de desalento e desespero.

Tais sentimentos eram muito fortes na França dos anos 1930, que foi uma década caracterizada por uma intensa fragmentação e radicalização política e ideológica da sociedade francesa, bem como pelas consequências bastante negativas da Grande Depressão e da ascensão do Nazi-Fascismo na Europa.

Na França as consequências da Grande Depressão foram mais duradouras do que em outros países, pois os governos franceses da época deram prioridade para o controle da inflação e dos gastos públicos e não para o crescimento econômico e para a geração de empregos (tal como fez Roosevelt nos EUA, por meio do 'New Deal'), seguindo uma política recessiva, que manteve o país estagnado e com elevados índices de desemprego, de pobreza e de miséria durante toda a década de 1930.

Além disso, a sociedade francesa assistiu ao enfraquecimento dos partidos políticos centristas moderados e ao fortalecimento dos partidos de Extrema-Direita, que eram racistas, antissemitas e antissocialistas.

Entre as principais forças políticas de Extrema-Direita francesas do período, nós tivemos:

A) Partido Popular Francês, liderado por Jacques Doriot;
B) Ação Francesa, liderada por Charles Maurras;
C) Partido Social Francês, liderado por François de La Rocque.


Moradores do 'Hôtel du Nord', em Paris, são representantes das camadas populares francesas dos anos 1930. Eles eram os protagonistas de muitos filmes do chamado 'Realismo Poético Francês'. 
O partido liderado por François de La Rocque foi o mais bem sucedido de todos os movimentos de Extrema-Direita franceses e desfrutou de grande popularidade no final dos anos 1930, possuindo boas chances de ganhar as eleições previstas para 1940, mas que não se realizaram devido à invasão e conquista da França pelos nazistas alemães. 

Na França, durante a mesma década de 1930, também tivemos um significativo crescimento dos partidos de Esquerda, que eram Socialistas, Comunistas e Radicais, que se uniram e formaram a chamada "Frente Popular". Em Maio de 1936, essa 'Frente Popular' venceu as eleições (por estreita margem de votos) para o governo do país.

A 'Frente Popular' era formada por socialistas, comunistas e radicais, sendo que o primeiro-ministro era Léon Blum, um socialista e judeu que era odiado pelos extremistas da Direita francesa pela sua origem e ideologia. O ódio da Direita e da Extrema-Direita francesas contra o governo da Frente Popular era tão forte que o seu slogan passou a ser 'Antes Hitler do que a Frente Popular'.

Tal simpatia pelo Nazi-Fascismo e o apoio que a Extrema-Direita deu à ocupação do país pelos alemães fez com que ela se tornasse uma força política minúscula durante cerca de 25 anos. Somente nos anos 1970, com o aumento da imigração originária das antigas colônias francesas é que ela irá renascer. 

"L'Humanité", jornal do Partido Comunista Francês, comemora as conquistas dos trabalhadores franceses que foram reconhecidos pelos 'Acordos de Matignon', de Junho de 1936.
Com a vitória eleitoral da Frente Popular, em Maio de 1936, tivemos a conquista e o reconhecimento de inúmeros direitos sociais e trabalhistas e que foram definidos nos chamados 'Acordos de Matignon', tais como:

A) Adoção da jornada de 8 horas diárias e das 40 horas semanais;
B) Férias remuneradas de 15 dias anuais;
C) Liberdade sindical;
D) Criação dos Contratos Coletivos de Trabalho entre empresas e trabalhadores;
E) Nacionalização dos bancos, indústria bélica e das ferrovias;
F) Criação dos delegados sindicais;
G) Aumentos de Salários entre 7% e 15%.

Tais conquistas foram resultado de greves que mobilizaram vários milhões de trabalhadores franceses e que se realizaram em Maio-Junho de 1936, logo após a vitória da 'Frente Popular' nas eleições. 

Com todas essas conquistas por parte dos trabalhadores, o governo da Frente Popular enfrentou duros ataques por parte das forças direitistas e retrógradas do país, que repudiavam o reconhecimento de tais conquistas. 
A prostitura Raymonde e seu amante (Edmond) instalam-se no 'Hôtel du Nord'. Eles mal sabiam que suas vidas mudariam muito a partir daí. 
Mas as grandes divisões internas entre as forças políticas que a formavam acabaram levando ao fim do governo da Frente Popular, em 1938, pois os liberais centristas do Partido Radical rejeitavam a mobilização crescente dos trabalhadores franceses, que realizaram maciços movimentos grevistas e manifestações imensas neste período. 

Todos estes conflitos políticos e sociais dividiram e enfraqueceram o país e acabaram por impedir que a França tivesse uma atuação política significativa durante a ascensão do Nazi-Fascismo na Europa durante toda a década de 1930, pois as forças da Direita barravam qualquer ação dos governos franceses que pudessem resultar no enfraquecimento dos regimes Nazista e Fascista, de Hitler e Mussolini, por quem os direitistas franceses nutriam uma grande simpatia.

Tal situação de forte polarização política, social e ideológica também impediu que a França se preparasse de forma adequada para a Segunda Guerra Mundial, pois apesar de ter um Exército mais numeroso e melhor equipado do que o da Alemanha Nazista, havia muitos simpatizantes do Nazi-Fascismo no sistema político e no Exército franceses.

Assim, quando ocorreu a invasão da França pelos alemães, em Maio de 1940, um dos poucos generais franceses, se não foi o único, que lutou, de fato, contra os nazistas foi Charles de Gaulle. Já os demais...

Renée e Pierre chegam ao 'Hôtel du Nord' e as suas expressões facial e corporal denunciam os sentimentos de desânimos e desalento que os aflige. 

O Realismo Poético Francês!

Compreender o contexto histórico dos anos 1930 é essencial para se entender o desenvolvimento do chamado 'Realismo Poético Francês', bem como a 'Trilogia da Fatalidade' de Marcel Carné, pois nestes filmes fica mais do que evidente todo o clima de pessimismo, tristeza, fraqueza, divisão, melancolia e de fatalidade que atingiu a França nos anos imediatamente anteriores ao início da Segunda Guerra 
Mundial.

O 'Realismo Poético Francês' foi um movimento cinematográfico que se desenvolveu durante os anos 1930 e tem entre os seus principais nomes alguns dos mais importantes cineastas da história, incluindo Jean Renoir, Jean Vigo, Jacques Feyder, Julien Duvivier e, é claro, Marcel Carné.

Os filmes deste gênero mostravam a situação de divisão, fraqueza e pessimismo que assolava todas as classes sociais francesas da época, inclusive os trabalhadores e os grupos marginalizados, tais como os bêbados, prostitutas, homossexuais, ladrões, órfãos, entre outros.

Assim, a partir de 1934, quando Jean Vigo realizou "L'Atalante', o cinema francês passou a exibir a vida das camadas populares nas telas do cinema, mostrando a difícil situação de pobreza, desemprego, miséria, abandono e desprezo que os trabalhadores e setores marginalizados do país enfrentavam neste período, bem como as histórias de amor frustradas nas quais eles se envolviam.
Pierre e Renée no quarto do 'Hôtel du Nord', local em que irão tentar colocar em prática o seu 'Pacto de Morte'.

O amor era visto, inclusive, por muitas pessoas como a única possibilidade de redenção, de desfrutar de alguma felicidade em meio a uma vida tão difícil quanto a que enfrentavam naquela época, que se caracterizava por crise econômica e social, desemprego, pobreza, desprezo, criminalidade e intensos conflitos políticos e ideológicos.

Logo, um ampla e variada gama de personagens que é altamente representativa das camadas populares está presente nos filmes do 'Realismo Poético': Operários, desertores, suicidas, bêbados, prostitutas, ladrões baratos, órfãos, pequenos gângsters e cafetões são alguns dos protagonistas dos filmes do gênero.

Entre os cenários nos quais as tramas se desenvolvem temos hotéis baratos, bares isolados, zonas portuárias, bordeis, estações de trem, que são os locais frequentados pelos personagens perdidos, desolados, explorados, solitários e desesperados que são os protagonistas das obras do 'Realismo Poético'

E junto com estes personagens desesperados e cenários desoladores (que eram parte naturais e parte feitos em estúdios) temos histórias com finais quase sempre trágicos e isso acontecia mesmo quando os protagonistas faziam de tudo para escapar dos mesmos, tentando evitar um destino que já estava definido. 
Pierre e Renée se amam intensamente, mas não vêem futuro para suas vidas miseráveis e solitárias.

O crítico Ronald Bergan apresentou a seguinte definição a respeito do Realismo Poético Francês: "O termo realismo poético descreve um conjunto de filmes franceses realizados entre 1934 e 1940, que combinava o realismo com um estilo lírico de cinema. A atmosfera fatalista e sombria, criada pela luz e pela decoração impressionistas, prenunciou o cinema noir".

Logo, toda essa atmosfera que é marcada pelos sentimentos de melancolia, frustração e fatalidade esteve presente na produção dos filmes do 'Realismo Poético' francês durante os trágicos anos 1930.

E um dos diálogos mais memoráveis da história do cinema é o que vemos neste 'Hôtel du Nord', quando Edmond diz que deseja se separar de Raymonde em função da atmosfera que ela simboliza em sua vida. Ele quer ir embora com Renée, por quem se apaixonou, mas Raymonde não aceita.  

Uma importante inovação nos filmes do 'Realismo Poético' é que tais filmes deram muito destaque aos roteiristas, o que foi resultado da criação do cinema falado. Com a introdução da fala no cinema, a partir de 1927, inúmeros jornalistas e escritores passaram a ser contratados para escrever os roteiros dos filmes e no 'Realismo Poético' eles tiveram um papel fundamental. E também inúmeras obras literárias passaram a ser adaptadas para o Cinema. 
Edmond encontra o copor de Renée no quarto, pensando que ela está morta. Posteriormente ele irá se apaixonar pela bela jovem, o que irá mudar radicalmente a sua vida. 

O poeta e escritor Jacques Prévert foi um dos mais requisitados para escrever roteiros para os filmes franceses, principalmente por Marcel Carné, com o qual colaborou em inúmeros filmes, durante e após o período áureo do Realismo Poético, incluindo os clássicos 'Le Quai des Brumes' (1938) e 'Le Jour Se Lève' (1939), primeiro e terceiro filmes desta 'Trilogia da Fatalidade'.

Porém, é bom ressaltar que os cineastas do Realismo Poético também promoveram inovações formais, na maneira de se contar as histórias dos seus filmes.

Um claro exemplo disso nós tivemos em 'Le Jour Se Lève' (1939), terceiro filme desta 'Trilogia', no qual Marcel Carné fez uso do recurso do flashback, algo que é bastante normal atualmente (Chris Carter utilizou muito deste recurso em 'Arquivo X', inclusive na última temporada da série, exibida em 2018), mas que nos anos 1930 foi uma grande novidade.

É bom também ressaltar para o fato de que o Realismo Poético Francês acabou influenciando fortemente outros gêneros cinematográficos muito relevantes e que foram o Neo-Realismo Italiano e o 'Film Noir'. Aliás, o cineasta italiano Luchino Visconti (um dos criadores do Neo-Realismo) chegou a trabalhar como assistente de Jean Renoir em 'Toni' (1935) e em 'Um Dia no Campo' (1936).

Portanto, o 'Realismo Poético' foi inovador tanto no aspecto formal, como no de conteúdo, exercendo ainda uma significativa influência na produção cinematográfica mundial nas décadas seguintes. 
Populares se aglomeram em frente ao 'Hôtel du Nord', em função da suposta morte de Renée.

A trama do filme!

A cena de abertura mostra o cenário no qual quase a maior parte das ações do filme irão se desenvolver, que é o 'Hôtel du Nord' e a pequena praça localizada logo à frente do mesmo. Nela, vemos um casal de jovens namorados (Pierre e Renée), andando de maneira desolada e sentando em um banco, com uma expressão triste e melancólica em seus rostos.

Eles estão juntos há apenas um ano e se amam intensamente, mas o pessimismo quanto ao futuro os levará a tomar uma drástica decisão, que é a de fazer um pacto de morte.

Pierre era um desenhista que havia saído de um orfanato há pouco tempo quando conheceu Renée, que era uma jovem de 21 anos que também havia ficado em um orfanato e que não passava de uma triste e solitária balconista vivendo em Paris, ganhando um baixo salário pelo trabalho realizado. Assim, ela mudou de emprego e passou a viver de posar para artistas. 
Investigador da Polícia conversa com Edmond a respeito da 'morte' de Renée, enquanto Raymonde observa a conversa ao fundo.

Logo, eles são duas pessoas tristes, pobres, solitárias e que se apaixonam, acreditando que o amor que sentem um pelo outro irá dar um sentido para suas vidas desesperadas.

Na sequência vemos os proprietários e os moradores do hotel jantando, sendo que um deles é Manolo, um adolescente que se assustou com um grande estrondo. A dona do hotel explica que isso é um reflexo da época em que ele vivia em Barcelona, na época da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), período no qual ele ficou órfão.

A Guerra Civil Espanhola foi um acontecimento que teve um grande impacto social e político na França, pois a guerra na Espanha começou quando as forças reacionárias do pais (Igreja, Latifundiários, Exército), que eram lideradas por Franco, não aceitaram o resultado da eleição que havia levado a 'Frente Popular' ao comando do governo.

O governo da 'Frente Popular' da França ainda tentou, de várias maneiras, ajudar o governo republicano espanhol, mas as pressões do reacionário governo britânico que, por baixo dos panos, apoiava Franco, impediram que tal ajuda atingisse um nível suficiente para que pudesse impedir a vitória franquista. 

Trecho de livro de George Orwell, sobre a sua vida na França, em 1928, diz o seguinte: "Você descobre o que é sentir fome. Com pão e margarina no estômago, sai e olha as vitrines... Você descobre o tédio que é inseparável da pobreza, nas vezes em que não tem nada para fazer e, mal alimentado, não consegue se interessar por nada". Qualquer semelhança com os filmes do 'Realismo Poético' não é mera coincidência. 

Durante e após a Guerra Civil Espanhola, centenas de milhares de espanhóis (principalmente bascos e catalães, que lutaram contra Franco desde o início da guerra) atravessaram a fronteira e foram morar na França, em condições precárias, principalmente nos últimos meses do brutal conflito (no qual morreram cerca de 500 mil espanhóis).

Em 1939, as tropas franquistas avançaram e conquistaram a Catalunha, que foi o último bastião de resistência das forças Republicanas democráticas (que reunia socialista, comunistas, anarquistas e liberais).

É bom ressaltar que essa vitória somente foi possível graças ao imenso apoio que as forças de Franco receberam (em armas e soldados) da Alemanha Nazista e da Itália Fascista (Mussolini enviou 70 mil italianos para lutar na Espanha). Inclusive, uma das mais famosas ações das forças nazi-fascistas na Espanha foi a destruição da cidade basca de Guernica pela aviação alemã (pela 'Legião Condor') e que deu origem ao famoso quadro de Picasso.

Aliás, este foi o primeiro grande bombardeio de uma cidade na Europa, ou seja, que tinha a população civil como alvo, algo que se tornou bastante comum durante a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Civil Espanhola foi usada, principalmente pelos nazi-fascistas italianos e alemães, como um campo de teste para novos armamentos e novas estratégias de guerra, como o bombardeio de cidades. 
Pierre envolto em brumas intensas, o que expressa o seu estado de espírito naquele momento, quando pensava em cometer suicídio, pois acreditava que havia assassinado Renée, a mulher que amava.

Obs1: Durante a ocupação alemã da França um oficial nazista perguntou a Picasso se ele mesmo é que havia pintado 'Guernica' e o genial pintor respondeu "Não. Foram vocês".

Dois dos principais personagens do filme são Edmond, que é um cafetão que vive de explorar o trabalho de Raymonde, a prostituta que é apaixonada por ele e da qual ele se aproveita. E os diálogos entre Raymonde e Edmond são dos melhores atributos do filme.

Eles se instalam no 'Hôtel du Nord' e Raymonde sai para 'trabalhar' enquanto ele fica no hotel. Edmond e Raymonde também são duas pessoas perdidas e solitárias, que não tem mais ninguém no mundo, e que (tal como Pierre e Renée) se uniram para conseguir sobreviver.

Edmond é um antigo gângster que passou os seus dois antigos amigos de roubos e falcatruas para trás, delatando-os para a Polícia. E agora os dois estão à sua procura.

Porém, Edmond tratou de mudar radicalmente a sua personalidade, o seu nome (que, antes, era Paulo), o seu jeito de viver e de se apresentar, passando a usar boas roupas e adotando uma postura mais agressiva, chegando a matar animais com as próprias mãos, sendo que antigamente ele não suportava ver sangue. 
Edmond, solitário, sobre uma ponte em Paris. Esta é mais uma das muitas belas cenas deste clássico de Marcel Carné. 

Um dos personagens, ao ficar sabendo disso, diz aquela que é uma das melhores frases do filme, que é 'Alguns dão o sangue, enquanto que outros o derramam', o que pode ser encarado, também, como uma referência à ascensão do Nazi-Fascismo na Europa, pois os regimes de Hitler e de Mussolini exaltavam a guerra e a violência.

Uma outra dupla de protagonistas do filme é formada pela jovem e bonita Renée e por Pierre, um casal de namorados apaixonados que não tem nenhuma perspectiva na vida e que, em função disso, fazem um pacto de morte. Eles combinam de se instalar no hotel para que Pierre possa matar Renée e se suicidar posteriormente.

Porém, os planos da dupla fracassam, pois ela sobrevive ao tiro, enquanto que ele acaba sendo preso por assassinato. Durante boa parte do filme vemos duas versões sobre quem desferiu o tiro, se foi Pierre ou a própria Renée. Cada um deles procurava assumir a culpa pelo disparo, tentando proteger o outro.

Edmond acabou ouvindo o tiro que havia sido disparado por Pierre, foi até o quarto em que o casal estava, mas permitiu que o mesmo fosse embora. Depois, quando é interrogado pela Polícia, Edmond acabou omitindo que havia encontrado Pierre segurando a arma. 
Emile e Louise são os donos do 'Hôtel du Nord' que, com seu espírito humanitário, oferecem um emprego para Renée.

Isso mostra que existe uma natural desconfiança das camadas populares em relação à Polícia e que também existe uma espécie de 'acordo de cavalheiros', uma conexão, entre os deserdados e desesperados da Terra. É como se eles terminassem por se reconhecer como tais e, assim, acabassem por se ajudar em função disso. E assim eles tentam manter a Polícia o mais longe possível de suas vidas. Afinal, quando ela aparece é para levá-los presos.

Esse natural preconceito policial com relação às camadas populares fica evidente quando, embora seja Edmond, por ter encontrado o corpo, que acabe sendo interrogado pela Polícia, quem é levada presa é Raymonde, o que a leva a dizer, ao policial, 'Pode gritar. Foi uma bela prisão'.

Logo, Raymonde acaba usando de ironia para dizer que, na verdade, a Polícia a estava levando apenas para mostrar às pessoas do local que alguém estava sendo preso, como se os policiais estivessem fazendo bem o seu trabalho de investigação, que mal havia começado.

Renée sobrevive ao pacto de morte e volta para o hotel, no qual começará a trabalhar, pois os donos são um casal de idosos de espírito humanitário que decide ajudá-la a retomar a sua vida. Ela também visitará Pierre, na prisão, depois que este decidiu se entregar para a Polícia e reconheceu que havia sido o responsável por atirar em Renée. 
Um desempregado, sozinho, em um banco de uma praça de Paris. Essa imagem era bastante comum na França dos anos 1930, o que era um dos principais motivos para os sentimentos de pessimismo e desânimo quanto ao futuro por parte da maioria dos franceses. 

Na prisão, Renée acaba falando, para o ex-namorado, que gostaria de retomar o relacionamento, mas o mesmo manifesta sentir profunda vergonha pelo fato de não ter cumprido com a sua parte no 'pacto de morte'. Ela diz que já esqueceu de tudo, mas Pierre responde dizendo 'É preciso dois para se esquecer'.

Ela tenta convencer Pierre de que eles são vítimas e cúmplices do que fizeram, mas que não são culpados. O diálogo de Renée e Pierre é um dos melhores e mais bonitos momentos deste belo filme de Carné.

Renée acaba atraindo o interesse de Kenel, um solteiro que gosta de conquistar as mulheres (uma espécie de 'Casanova Proletário') e que dorme com Ginette, esposa de seu amigo... Mas ela não é boba e já está sabendo tudo a respeito da fama dele e o mantém a distância. Porém, Ginette vê o que ele fez e acaba indo embora do Hotel, abandonando o marido e também a Kenel.

E o cafetão Edmond também irá acabar se apaixonando por Renée, não escondendo de ninguém, nem dela mesma, os sentimentos que tem pela bonita jovem, embora ele tenha dificuldades para dizer a frase 'eu te amo', mas que acabará falando.
Kenel (o 'Casanova Proletário') tenta conquistar Renée, mas ela já conhece a fama dele e o rejeita. Ao fundo vemos uma prostituta encostada na parede, esperando por clientes.

Edmond chega a convencer Renée a ir embora para Marselha, juntos, o que fará com que Raymonde fique desesperada. Edmond deixa claro que não gosta da vida que leva e que deseja se separar de Raymonde. Ele demonstra ter certeza de que, ao lado de Renée, poderá encontrar a felicidade que tanto deseja e sonha. Durante essa conversa ele pergunta para Raymonde se ela gosta da vida que tem e a mesma responde 'Deixando de lado o que é ruim, o resto é bom'.

Edmond diz para a ex-companheira que ele precisa de uma nova atmosfera em sua vida e que ela simboliza uma atmosfera (ou seja, uma vida) a qual ele deseja deixar para trás, levando-a a perguntar 'Atmosfera! Atmosfera! E eu tenho cara de atmosfera?', em uma frase que entrou para a história do Cinema.

Depois, Raymonde fala para Renée que esta mudou Edmond, que foi contaminado com a doença do suicídio, fazendo com que ele começasse a pensar. 

Assim, diz Raymonde, ele voltou a ser mesma pessoa que era antes de conhecê-la e que o mesmo passou a não sentir mais prazer em nada. E Raymonde fala para Renée 'Você é uma atmosfera incomum'...
Edmond diz que precisa mudar de atmosfera, pois diz que se sente sufocado por Raymonde. Ela contesta, perguntando "Atmosfera! Atmosfera! Eu tenho cara de atmosfera?'.

Quando a dupla de gângsters, aos quais Edmond traiu, aparece no hotel a fim de acertar as contas com ele, inicialmente Raymonde o protegeu, dizendo que não sabia onde o mesmo se encontrava, mas depois, quando viu que Edmond não a desejava mais, ela acabou por dizer aos bandidos que Edmond estava morando ali mesmo, no hotel.


Edmond chegou a embarcar no navio para Marselha, junto com Renée, mas esta acabou desistindo, pois não conseguia esquecer de Pierre e acabou indo visitar o mesmo na prisão novamente para lhe dizer isso. E Renée reconhece que deu esperança para Edmond, o que foi pior que matá-lo.

Mas foi exatamente isso que ela acabou fazendo, pois Edmond foi de encontro à morte quando ficou sabendo que estava sendo procurado pelos gângsters aos quais traiu anos antes. A traição de Raymonde e o abandondo de Renée levaram Edmond à morte, pois sem o amor desta última a vida não tinha mais sentido para ele.

Pierre é libertado e retoma o seu romance com Renée. Em meio à festa do 14 de Julho (data nacional francesa) eles estão sentados no banco da praça que fica em frente ao hotel, e ela diz uma frase, que é 'Le Jour Se Lève' (o dia está nascendo). 
Edmond tenta convencer Renée a ficar junto com ele, mas ela só tem pensamentos para Pierre.

E 'Le Jour Se Lève' será o título do terceiro e último filme desta bela trilogia de Carné. Teria sido mera coincidência? Entendo que não, pois o mesmo foi filmado já no ano seguinte, em 1939.

E Renée também diz, para Pierre, que aquele é o fim do 'Hôtel du Nord', anunciando, ao mesmo tempo, o fim do filme, mas também deixando claro que eles irão iniciar uma nova fase em suas vidas e na qual ambos serão felizes.

Diálogo:

Arletty: Não gosta da sua vida?
Edmond: Você gosta?
Arletty: Eu tenho que. Acostumei-me. Deixando de lado o que é ruim, o resto é bom. Brigamos, mas chegamos a bom termo na cama. E então?
Edmond: Então, nada. Estou cheio disso. Sinto-me sufocado. Entendeu? Sufocado.
Arletty: Em Toulon o ar é bom, você respirará melhor.
Edmond: Onde quer que se vá sentiremos a podridão.
Arletty: Vamos ao estrangeiro, às colônias.
Edmond: Com você?
Arletty: Porque não?
Edmond: Eu preciso mudar de atmosfera e minha atmosfera é você.
Arletty: É a primeira vez que me chamam de atmosfera. Se eu sou uma atmosfera você é um povoado esquisito... Atmosfera? Atmosfera? Pareço com uma atmosfera? Vá sozinho. Aproveite a pescaria e a sua atmosfera.

Edmond, depois que não conseguiu convencer Renée a ficar com ele, vai ao encontro da morte. 

Informações Adicionais!

Título: Hôtel du Nord ('Hotel do Norte');
Diretor: Marcel Carné;
Roteiro: Jean Aurenche e Henri Jeanson; Baseado em livro de autoria de Eugene Dàbit;

País de Produção: França; 
Ano de Produção: 1938;
Duração: 95 minutos; Gênero: Drama;
Música: Maurice Jaubert;
Fotografia: Louis Née e Armand Thirard;
Elenco: Annabella (Renée); Jean-Pierre Aumont (Pierre); Louis Jouvet (Edmond); Arletty (Raymonde); Paulette Dubost (Ginette); Andrex (Kenel); André Brunot (Emile Lecouvreur, dono do hotel); Jane Marken (Louise Lecouvreur, dona do hotel); Henri Bosc (Nazarède); Armand Lurville (Investigador); Bernard Blier (Prosper); François Périer (Adrien); Marcel André (Cirurgião).

Renée e Pierre, alegres e sorridentes, voltam a ficar juntos, acreditando que poderão ser felizes novamente.    

Links:

Informações sobre o filme:

https://www.imdb.com/title/tt0030252/?ref_=ttfc_fc_tt

O trágico no Realismo Poético:

http://www.rua.ufscar.br/o-tragico-no-realismo-poetico/

A Extrema-Direita na história da França:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2904200207.htm

Os acordos de Matignon:

https://noseahistoria.wordpress.com/2013/11/24/governos-da-frente-popular/

Trecho do Filme:

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

'Campane a Martello': Luigi Zampa faz homenagem às mulheres italianas e defende o predomínio do interesse coletivo sobre o individual! - Marcos Doniseti!

'Campane a Martello': Luigi Zampa faz homenagem às mulheres italianas e defende o predomínio do interesse coletivo sobre o individual! - Marcos Doniseti!
Luigi Zampa mostra o quanto as mulheres italianas sofreram com as consequências da Segunda Guerra Mundial, durante a qual muitas delas foram forçadas a se prostituir para poder sobreviver, devido à destruição e a miséria provocada pelo envolvimento da Itália no conflito. 
Contexto histórico!

Este é um belo e sensível filme de Luigi Zampa, que foi um dos principais diretores italianos ligados ao Neo-Realismo cinematográfico italiano, embora ele não desfrute da mesma fama de outros cineastas consagrados, como são os casos de Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti, que constituem, de certa maneira, a 'Santíssima Trindade' do Neo-Realismo. 

O roteiro do filme de Zampa é de autoria de Piero Tellini, que também escreveu roteiros para alguns importantes filmes Neo-Realistas, incluindo 'Il Bandito' e 'Il Delitto di Giovanni Episcopo' (que foram dirigidos por Alberto Lattuada) e 'Vivere in Pace' e 'Angelina, a Honorável', sendo que estes dois últimos foram dirigidos pelo mesmo Luigi Zampa.

A trama de 'Campane a Martello' (Toquem os Sinos) se desenvolve após o final da Segunda Guerra Mundial, quando os soldados dos EUA que foram lutar na Itália estão retornando ao seu país, depois de lutarem durante 21 meses, entre Julho de 1943 e Abril de 1945, em território italiano contra as forças do Nazi-Fascismo.

A Itália desta época é uma país muito pobre, com um povo que passa fome e vive na miséria, o que é resultado do fracasso econômico do regime Fascista e das derrotas humilhantes sofridas na guerra, durante a qual o território e o povo italianos sofreram intensos bombardeios e foram palco e vítimas de violentos combates. 
Mulheres italianas se despedem dos soldados dos EUA no porto de Livorno. Muitas delas se prostituíram e engravidaram durante a guerra. 

E o que vemos é um país devastado, com muitas cidades em ruínas, a área rural destruída (os camponeses foram vítimas das 'requisições' de alimentos feitas pelo soldados), milhares de mulheres italianas foram estupradas (inclusive por soldados das Forças Aliadas), havia muitos desempregados, crianças abandonadas, fome, miséria, elevada criminalidade e prostituição em grande escala. 


No início do filme, vemos o porto da cidade de Livorno sendo recuperado, com muitos barris no local, pois a região produz vinho e o mesmo é exportado, o que mostra um início de recuperação da economia italiana, mas que ainda está longe de beneficiar à população. Mas enquanto o navio italiano ancorado no porto está em ruínas, o navio dos EUA que levam os soldados ianques de volta para a sua terra natal é 'novo em folha'.

De fato, a recuperação econômica e a reconstrução da Itália, mesmo, ainda irá demorar alguns anos para que pudesse ser concluída, o que irá acontecer por volta de 1953/1954, cinco anos após a produção de 'Campane a Martello', graças aos recursos enviados pelos EUA por meio do Plano Marshall. 

A trama do filme!

A protagonista da história é uma bonita jovem (Agostina Bortoloci), que é interpretada pela bela Gina Lollobrigida (ainda em início de carreira; este foi o seu terceiro filme), originária da cidade de Isola d'Ischia (que é uma ilha localizada na província de Nápoles, no sul da Itália). 
Jornal italiano 'Il Tempo' anuncia o retorno dos soldados dos EUA para a sua terra natal, logo após a derrota do Nazi-Fascismo na Europa. 

Antes da Segunda Guerra Mundial começar a bela Agostina era uma empregada doméstica, mas que durante o conflito viveu em Livorno (localizada na região da Toscana, norte da Itália, próxima a Florença), período durante o qual ela praticou a mais 'antiga das profissões': a prostituição. Seus principais clientes (bem como de muitas outras mulheres italianas daquela época) foram os soldados dos EUA que lutaram no país.


Aliás, logo no início do filme vemos a notícia nos jornais do retorno destes soldados para o seu país natal e as mulheres italianas, com as quais eles se relacionaram durante a sua estadia na terra de Leonardo da Vinci, foram ao porto se despedir dos mesmos. 

Estes soldados ianques eram bem abastecidos de dólares e produtos que eram desejados pelos italianos (alimentos e cigarros, por exemplo, que foram usados como se fosse dinheiro na Europa dominada pelos Aliados) e tinham um elevado poder de compra na empobrecida e miserável Itália da época da Segunda Guerra Mundial (1940-1945), conflito no qual as Forças Armadas italianas sofreram sucessivas e humilhantes derrotas. 

Assim, não saía caro para os militares ianques o envolvimento com mulheres italianas para as quais a prostituição acabou sendo a única alternativa para sobreviver em meio ao caso e à miséria gerada pela Guerra em que Mussolini jogou o país, em Junho de 1940. 
Agostina e outras prostitutas foram expulsas de Livorno e são obrigadas a retornar para as suas cidades de origem. 

Em uma carta que escreveu para a sua esposa, durante a invasão da Sicília, em Julho de 1943, o general George S. Patton, que comandou as tropas dos EUA na invasão da ilha, disse que com uma lata de feijão já era possível convencer uma mulher da ilha a se prostituir, tal a miséria que existia ali. E no seu diário, Patton escreveu o seguinte: "A gente deste país é a mais carente e esquecida por Deus que já vi". 


Obs1: As afirmações feitas por Patton, em sua carta e no seu diário, foram retiradas do livro 'A Segunda Guerra Mundial', de Antony Beevor (página 555). 

As humilhantes derrotas sofridas pelas Forças Armadas italianas acabaram por mostrar ao povo italiano o quanto o regime de Mussolini era frágil e havia se imposto com base em mentiras descaradas, como a de que iria fazer da Itália um novo Império Romano, transformando-a numa potência mundial que seria respeitada e temida por outras nações. 

As derrotas fragorosas sofridas pela Itália na Guerra (no Norte da África, na Grécia) deixaram claro para o povo italiano o quanto ele havia sido enganado e iludido pelo regime Fascista.  

No caso da trama do filme vimos que após o final da guerra o governo decidiu expulsar, para as suas cidades de origem, todas as prostitutas que não eram originárias da região em que estavam, sendo que Agostina foi uma delas. Ela tentou convencer o funcionário dos Carabinieiri (a Polícia italiana) a não fazer isso, mas ele se manteve inflexível, e ela ficou sem opção, a não ser retornar para a sua cidade natal, na ilha de Ischia. 
Loretta (interpretada por Yvonne Sanson, atriz grega que fez carreira na Itália) e Agostina chegam a Ischia, para onde vão em busca do dinheiro que esta última enviou para que o pároco Don Giuseppe guardasse. O que ela não sabe é que Don Andrea, o novo padre, gastou todo o seu dinheiro na montagem de um orfanato para 20 crianças. 

Agostina volta para Ischia junto com outra amiga de profissão (Australia) que fica sabendo que a amiga fez uma boa poupança durante todos aqueles anos, mas que não depositou o dinheiro em um banco. Agostina mandou todo o dinheiro para um padre de Ischia (Don Giuseppe), pedindo que o mesmo guardasse o dinheiro que havia enviado (eram quase 1.500.000 Liras).


Em função disso, quando chega em Ischia, os moradores da cidade pensam que Agostina é uma mulher rica, de uma família abastada e respeitável, sendo tratada como tal pelos habitantes locais quando chegou à cidade. 

Porém, ao desembarcar em Ischia e procurar pelo padre (Don Giuseppe) a quem tinha enviado todo o dinheiro que havia acumulado, Agostina ficou sabendo que ele havia morrido (com 92 anos) e que o novo pároco (Don Andrea) havia gasto tudo para construir um orfanato no qual abrigou 20 crianças e cujas mães eram mulheres que haviam sido engravidadas por soldados aliados durante a Guerra, mas que foram abandonadas pelas mães, que não tinham condições de criar as crianças. 

Desta maneira, Agostina fica totalmente desapontada, pois ela e a sua melhor amiga (Loretta/Australia) planejavam usar o dinheiro acumulado para abrir uma loja, o que lhes permitiria abandonar a prostituição, transformando-se em comerciantes respeitáveis na Itália do Pós-Guerra. 
Agostina e Loretta olham para as crianças do orfanato e estranham o motivo delas serem tão admiradas pelas mesmas. 

Mas como o padre, Don Andrea, usara o dinheiro para construir o orfanato, os planos das duas foram por água abaixo, sendo que durante boa parte do filme vemos várias situações em que elas demonstram, claramente, a sua frustração pelo que havia acontecido. Inicialmente, elas chegam a querer manter distância das crianças que chamam Agostina de 'Mamãe' e somente no final é que elas vão se dar conta da importância do orfanato para aquelas crianças abandonadas. 


E os moradores de Ischia, incluindo os seus habitantes de maior prestígio (prefeito, comandante da Polícia, empresários locais), não cansam de bajular Agostina, pensando que ela era uma mulher muito rica e pensando que poderiam arrancar mais dinheiro dela para seus projetos. 

E o ex-noivo de Agostina, um soldado chamado Marco, acaba retornando para Ischia para se encontrar com a mesma. Marco diz que deseja ir para Nápoles e se casar com ela, mas Agostina fala que não o merece, pelo seu passado, a respeito do qual ela não comenta absolutamente nada, escondendo que viveu como prostituta durante quatro anos (1941-1945). Marco insiste e diz que irá esperar por ela, em Nápoles, sendo que Agostina, depois de pensar em voltar a viver da prostituição, acaba concordando.

No entanto, em um determinado momento, Agostina terá uma conversado reveladora com Don Andrea, na qual este demonstra que sabia, sim, que o dinheiro que ele usara para construir o orfanato não era da Igreja, mas dela, Agostina. Mas ele pensara que Agostina era rica e que tal dinheiro não iria lhe fazer falta alguma. 

Porém, o choque maior que Don Andrea sofre é descobrir como Agostina havia acumulado tais recursos, fazendo com que o padre fique doente. E depois ele irá tentar ressarcir Agostina e, para isso, tenta convencer o prefeito da cidade a lhe dar o dinheiro necessário para poder pagar a ex-prostituta. 

E com o objetivo de pressionar o governante local, Don Andrea manda tocar os sinos da Igreja (daí o nome do filme...), reúne o povo em frente ao local e fala para todos os moradores de Ischia que sem o dinheiro da prefeitura ele não terá como manter o orfanato em funcionamento. E para deixar isso bem claro, Don Andrea fecha o orfanato, colocando as crianças na escadaria da Igreja, local em que elas ficam durante uma noite inteira. 
As crianças do orfanato olham para a 'Mama Agostina' pela primeira vez. As crianças eram filhas de mães italianas e de soldados de vários países (EUA, Inglaterra, Alemanha, Filipinas...). Don Andrea faz uma brincadeira, dizendo que os soldados não 'negaram fogo' quando se relacionaram com as mulheres italianas...

Tal atitude, no entanto, é atacada pelo prefeito e pelos poderosos locais, que pouco se importam com a situação das crianças e pensam apenas em seus próprios interesses.


Isso acontece porque o prefeito da cidade está reservando o dinheiro do governo para a construção de um monumento (ao custo de 700 mil liras) que é considerado prioritário por ele, mas que não irá beneficiar a população em absolutamente nada.Toda esta situação acaba deixando a população da cidade indignada e o prefeito, fortemente pressionado pelos moradores, mesmo que a contragosto, acaba cedendo e doa os recursos necessários (700 mil Liras) para manter o orfanato em funcionamento. 

Mas a revolta popular fica ainda mais intensa quando as pessoas descobrem que Don Andrea tinha escondido de todos que ele irá, de fato, usar o dinheiro da prefeitura para ressarcir Agostina. Com isso, a população se volta contra Agostina e Don Andrea. 

No final, apesar de Loretta falar que poderão retomar o dinheiro, ameaçando até processar Don Andrea, Agostina acaba desistindo da ideia de recuperar o seu dinheiro, pois ela percebe que ajudar aquelas vinte crianças é mais importante do que abrir a sua loja e enriquecer, e decide ir embora, para Nápoles, onde continuará a sua luta em busca de uma vida digna, junto com Marco. 

Enquanto isso, Don Andrea acaba falecendo, devido aos problemas de saúde que são resultado do tempo em que ficou preso em um campo de concentração na Alemanha. O comandante da Polícia recusa-se a ficar com as 700 mil Liras e os demais líderes da cidade (prefeito, empresários) acabam fazendo a mesma coisa. Assim, a Igreja fica com o dinheiro e pode manter as crianças no orfanato. 
Don Andrea fala para Agostina e Loretta a respeito dos gastos que tiveram para construir o orfanato para as 20 crianças. Ele gastou todo o dinheiro que ela enviou para o padre anterior, Don Giuseppe, já falecido. Merece destaque a brilhante atuação de Eduardo De Filippo no papel de Don Andrea. 

Tema do filme: Interesse Individual X Interesse Coletivo!


Desta maneira, vemos que os principais assuntos deste belo filme de Luigi Zampa são a condenação do egoísmo e do individualismo, bem como a possibilidade de redenção dos italianos por meio do predomínio do interesse coletivo sobre o individual na tarefa de construir a Itália do Pós-Guerra. 

O egoísmo, inicialmente, é de Agostina e de Australia, que ficam inconsoláveis com o fato do dinheiro da primeira ter sido usado para construir o orfanato, mostrando pouca preocupação com o destino daquelas vinte crianças abandonadas que foram beneficiadas pela obra. 

E depois vemos o egoísmo do padre (Don Andrea), que usou o dinheiro de Agostina, mesmo sabendo que o mesmo não pertencia à Igreja, para construir o orfanato. Ele não se preocupou com o fato de que ela estava sendo  fortemente prejudicada, para não dizer roubada, mesmo. 

O prefeito também também deixa claro que também possui essa mesma postura individualista, pois pensa apenas em fazer uma obra que irá beneficiá-lo politicamente, demonstrando também seu desprezo pela situação da crianças do orfanato. 

E também fica claro o egoísmo da população local que, inicialmente, defendia o uso do dinheiro da prefeitura para manter o orfanato funcionando (mas que usa seu próprio dinheiro para ir ao cinema) e que mudou de ideia quando as pessoas ficaram sabendo que Don Andrea iria ressarcir Agostina, pouco se importando com o fato de que o dinheiro dela foi usado, sem a sua autorização, para a construção do orfanato.
Um rico empresário faz um discurso elogiando a capacidade de iniciativa individual, o espírito empreendedor, que permitiu que Agostina (uma prostituta) fosse embora da cidade e acumulasse riqueza. Já o trabalhador diz que ela é uma legítima representante da classe operária. E o prefeito diz que ela foi bem sucedida devido à sua espiritualidade, procurando agradar aos fiéis da cidade. Somente no final é que eles irão descobrir qual foi a maneira pela qual ela acumulou tanto dinheiro. 

E a maneira como Zampa conclui o seu filme, que possui um tom levemente satírico que aponta para o fato de que a reconstrução da Itália no Pós-Guerra, depois de muitos anos de crise econômica (Grande Depressão dos anos 1930), guerra e miséria, iria exigir uma postura diferente por parte dos italianos, que teriam de abrir mão daquilo que é totalmente supérfluo (exemplo: a prefeitura construir uma obra apenas para fortalecer politicamente os governantes).


No lugar dessas obras inúteis, os Zampa deixa claro que os italianos deveriam passar a investir naquilo que fosse prioritário para melhorar as condições de vida da população, como seria a construção de orfanatos, creches e escolas para dar abrigo e oportunidades de estudo a milhares de crianças abandonadas, que existiam em grande número na Itália, Alemanha e em toda a Europa ao final da Segunda Guerra Mundial.

E a sequência final mostra Agostina se emocionando com a homenagem sincera que as crianças do orfanato lhe fizeram. Assim, ela percebe que fez a escolha certa ao abrir mão do dinheiro, permitindo que o orfanato pudesse continuar funcionando. E até os adultos da cidade (prefeito, comandante da Polícia) terminam por homenageá-la no momento em que ela embarca para Nápoles.  

Logo, neste ótimo filme dirigido por Zampa e roteirizado por Tellini, fica clara a condenação do individualismo burguês e da ganância pessoal (ou seja, do que chamamos atualmente de Capitalismo Neoliberal) e a defesa do predomínio dos interesses coletivos, defendendo a ideia de que deve-se dar total prioridade para a necessidade de se resolver os principais problemas sociais e econômicos que a Itália possuía naquele momento e que já enumerei aqui. 

Obs2: O tom de sátira que está presente em alguns momentos deste filme de Luigi Zampa foi novamente utilizado em outro excelente filme que foi dirigido por ele, que foi o 'Gli Anni Rugenti' (1962), que ridiculariza o Fascismo do início ao fim. Este filme também já foi analisado por mim aqui no blog. De certa maneira, Zampa foi um dos diretores que antecipou o imenso sucesso, de alcance mundial, das comédias italianas dos anos 1950, 1960 e 1970. Os geniais diretores Pietro Germi, Dino Risi, Mario Monicelli e Ettore Scola foram alguns dos principais nomes. 
O padre de Ischia (Don Andrea) convoca o povo e avisa que terá que fechar o orfanato por falta de recursos e cobra que o Prefeito ceda as 700 mil Liras, que estão destinados para construir o 'monumento à vitória', para o orfanato em vez de construir um monumento inútil. 

Luigi Zampa, o Neo-Realismo e a redenção do povo italiano no Pós-Guerra!


Esta visão, essencialmente socialista, que é defendida por Luigi Zampa e Piero Tellini em 'Campane a Martello', pode não ser do agrado de muitos (principalmente dos neoliberais), mas é perfeitamente coerente com as ideias que eram defendidas pelos cineastas e roteiristas ligados ao Neo-Realismo italiano, que mostraram, corajosamente, quais eram os principais problemas que afligiam o povo italiano naquele momento e que a solução para os mesmos estava na construção de uma sociedade justa e igualitária. 

Somente assim é que o povo italiano poderia se redimir dos vinte anos em que o país foi dominado pelo regime Fascista liderado por Mussolini. Aliás, este subiu ao poder em Outubro de 1922 e foi derrubado em Julho de 1943. Logo, Mussollini governou a Itália por 20 anos e 9 meses. E quantas crianças temos no orfanato? Vinte. É como se para cada ano de domínio fascista, tivéssemos uma criança abandonada. 

Logo, cada uma destas crianças órfãs representa um ano de governo fascista e cuidar delas, no Pós-Guerra, simboliza a redenção não apenas de Agostina (que abriu mão de receber o dinheiro de volta), mas de todo o povo italiano, que deu um apoio significativo ao governo de Mussolini durante muitos anos e que, portanto, ajudou a colocar a Itália na catastrófica situação em que a mesma se encontrava após o final da Segunda Guerra Mundial. 

Aliás, o próprio Zampa já havia tratado, de forma corajosa, desse assunto em seu filme imediatamente anterior, que foi 'Anni Difficili', que foi produzido em 1948, um ano antes de 'Campane a Martello'. 
As 20 crianças (uma para cada ano de governo Fascista liderado por Mussolini) passam a noite na escadaria da Igreja.

Portanto, a obra de Zampa é coerente com a sua visão de mundo e 'Campane a Martello' é um belo exemplar da mesma. E também vimos, neste filme, algumas das principais características do Neo-Realismo, tais como: 


A) O uso de atores não-profissionais (moradores de Ischia atuaram no filme); 
B) A filmagem em locações naturais;
C) Mostrar na tela do cinema aspectos importantes da realidade econômica e social da Itália da época, caso da prostituição e das crianças abandonadas;
D) A pobreza da região e do povo, bem como as desigualdades sociais, aparecem com destaque no filme;
E) A crítica aos valores individualistas e egoístas da burguesia.  

Entre as novidades, temos a presença de duas belas atrizes protagonizando o filme (Yvone Sanson e Gina Lollobrigida), o que também será feito por outros cineastas Neo-Realistas (o que foi o caso de Giuseppe De Santis, com Silvana Mangano em 'Riso Amaro', que já analisei aqui no blog).  

Obs3: A respeito do tema das crianças abandonadas e menores infratores na Europa do Pós-Guerra, temos outros ótimos filmes Neo-Realistas que trataram do assunto, tais como: Sciuscià (Vítimas da Tormenta, de Vittorio De Sica, de 1946), 'Alemanha Ano Zero' (de Roberto Rossellini, de 1948) e 'Proibito Rubare' (Luigi Comencini, de 1948). Os dois primeiros filmes já foram analisado por mim aqui no blog. 


As crianças do orfanato vão se despedir da 'Mama Agostina', que desistiu de recuperar o dinheiro que Don Andrea usou para criar o orfanato, deixando as 700 mil Liras para a Igreja manter o orfanato funcionando. 

Informações Adicionais!

Título: Campane a Martello (Toquem os Sinos);
Direitor: Luigi Zampa;
Roteiro: Piero Tellini;
Ano de Produção: 1949; País de Produção: Itália;
Duração: 85 minutos; Gênero: Drama;
Música: Nino Rota; Fotografia: Carlo Montuori;
Assistentes de Direção: Mauro Bolognini; Giuseppe Colizzi;
Elenco: Gina Lollobrigida (Agostina Bortoloci); Yvonne Sanson (Loretta/Australia); Carlo Romano (O Marechal); Clelia Matania (Bianca); Eduardo De Filippo (Don Andrea); Carlo Giustini (Marco); Ada Colangeli (Francesca), Carlo Pisacane (Filippo, o sacristão), Agostino Salvietti (Prefeito); Salvatore Arcidiacono (Farmacêutico); Vittoria Febbi (Connie). 

Links:

Informações sobre 'Campane a Martello':

https://www.imdb.com/title/tt0042303/?ref_=nv_sr_2

Texto sobre o filme 'Sciucià' (Vítimas da Tormenta), de Vittorio De Sica:

http://popeseries.blogspot.com/2017/03/sciuscia-vitimas-da-tormenta-mostra-as.html
Agostina fica emocionada e chora com as homenagens que recebe quando vai embora para Nápoles. 
Texto sobre o filme 'Alemanha Ano Zero', de Roberto Rossellini:

http://popeseries.blogspot.com/2018/08/alemanha-ano-zero-rossellini-mostra.html

Texto sobre o filme 'Gli Anni Ruggenti':

http://popeseries.blogspot.com/2017/05/gli-anni-ruggenti-luigi-zampa-fez.html

Texto sobre o filme 'Riso Amaro' (Arroz Amargo):

http://popeseries.blogspot.com/2017/03/riso-amaro-arroz-amargo-um-classico-do.html

Trecho do Filme: