domingo, 2 de dezembro de 2018

'Le Mépris' ('O Desprezo') - Godard valoriza a cultura clássica, mostra o colapso de um casamento e demonstra seu desprezo pelo cinema comercial de Hollywood! - Marcos Doniseti!

'Le Mépris' ('O Desprezo') - Godard valoriza a cultura clássica, mostra o colapso de um casamento e demonstra seu desprezo pelo cinema comercial de Hollywood! - Marcos Doniseti!
'Le Mépris' ('O Desprezo'): Filme de Godard é baseado em um livro de Alberto Moravia e mostra o fim de uma relação e crítica o cinema comercial de Hollywood, além de conectar tais histórias com inúmeras referências históricas e culturais, principalmente com a 'Odisseia', de Homero.

A Produção de 'Le Mépris'!

'Le Mépris' é uma produção de 1963, sendo considerado um dos melhores filmes de Godard na época em que a sua carreira estava no auge. Ele foi o sexto longa-metragem do cineasta francês, que dirigiu 17 filmes entre 1959 e 1968, sem contar com alguns curtas e segmentos em outros filmes. 


Este foi, por exemplo, o caso do segmento 'Il Nuovo Mondo' no longa 'Ro.Go.Pa.G', produção de 1964 que foi filmada junto com Roberto Rosselini, Pier Paolo Pasolini e Ugo Gregoretti. Nesta obra cada um dos quatro cineastas se ocupou de um segmento do filme. 

Os filmes de Godard, nos anos 1960, já eram caracterizados por inúmeras reflexões de caráter filosófico e existencial, que eram inseridas em meio a trama mais convencional, o que também acontece neste excelente 'Le Mépris', mas naquele período a sua obra possuía uma leveza, frescor e humor que, infelizmente, acabou desaparecendo em seus filmes mais recentes.

A abertura do filme também é bastante incomum, com o próprio Godard anunciando quem são os atores, atrizes, produtores, roteirista, músico e fotógrafo do filme. Logo, não há créditos iniciais. Assim, em 'O Desprezo' Godard continua inovando a forma de trabalhar a linguagem cinematográfica. 

Obs1: De fato, essa 'inovação' de Godard não foi tão inovadora quando se pensa, pois no filme Noir 'Naked City' (dirigido por Jules Dassin e que é uma produção de 1948), o produtor do mesmo (Mark Hellinger) também começa o filme falando quem são os atores, atrizes e demais participantes do mesmo, bem como a maneira pela qual o filme foi realizado, com cenas filmadas nas ruas de Nova York e com a participação de cidadãos comuns no papel de coadjuvantes. A diferença é que, no caso do filme de Dassin nós temos a exibição de créditos após o final do filme, o que não acontece no filme de Godard. 
A sequência de abertura de 'Le Mépris' dura 3 minutos e 15 segundos e mostra a mais bela e sensual atriz do mundo (na época), Brigitte Bardot, seminua. Os tons variam, mudando de vermelho para branco e, depois, para o azul, que são as cores da bandeira francesa. 

Nos filmes de Godard também é comum termos uma frase que, de certa maneira, acaba resumindo se não todo, pelo menos dá uma boa ideia do que veremos em grande parte do filme. E nos filmes do genial cineasta francês deste período isso sempre acontecia. Em 'Bande à Part' (que já foi analisado por mim aqui no blog) também temos um pequeno texto que resume a trama do filme. 


E neste  ótimo 'O Desprezo' isso também ocorre, quando, logo no começo, é citada uma frase do crítico André Bazin (que foi da revista 'Cahiers du Cinema', tal como Godard, Truffaut , Rivette, Rohmer e Chabrol, ou seja, a nata da 'Nouvelle Vague'), que é a seguinte: 'O Cinema substitui um mundo por outro mais em harmonia com nossos desejos'. 

Godard conclui dizendo que o filme é a história desse mundo, no qual a criação artística, sim, é relevante e não o lucro. 

Neste momento, vemos a câmera de Godard filmando o câmera do filme que estava sendo realizado na trama (Ulisses, dirigido por Fritz Lang) e, depois, o câmera aponta o seu instrumento para a câmera de Godard. Portanto, Godard está dizendo que este filme é, na verdade, sobre o Cinema e trata das condições em que os filmes são realizados.

Assim, Godard aponta claramente para o fato de que, em sua visão, a busca pelo lucro não é compatível com a criação de uma verdadeira obra de arte, sendo que ele deixa claro, na conclusão do filme, que a cultura jamais deverá ser guiada com base nas regras do mercado. 
Momento da sequência de abertura, que mostra Camille e Paul felizes, em que o tom muda para o branco. O produtor americano Prokosch irá usar dessa relação para convencer Paul a fazer as mudanças no roteiro do filme, dirigido por Fritz Lang, pois ele precisa de dinheiro para manter o elevado padrão de vida que desfruta com a belíssima esposa,  que é interpretada por Brigitte Bardot. 

A Trama do Filme!


A trama do filme é relativamente simples e mostra um cineasta alemão (Fritz Lang, interpretando ele mesmo) que está dirigindo um filme na Itália (nos estúdios da Cinecittà, em Roma) que se chama 'Ulisses' e que, é claro, se baseia na Odisseia de Homero. 

Mas o roteirista (Paul Javal) sofre fortes pressões por parte do produtor do filme, um americano (Jereme Prokosch, interpretado por Jack Palance), para que mude a história, a fim de tornar a mesma mais acessível ao grande público e, desta maneira, ele possa lucrar com a obra. 

Para conseguir isso, Prokosch oferece uma boa soma (10 mil dólares) para que Paul aceite promover tais mudanças na história. Inicialmente, Paul pensa seriamente em aceitar a proposta, pois deseja terminar de pagar o novo apartamento que ele e a sua belíssima esposa (Camille) acabaram de comprar. Paul também diz que está aceitando mudar o roteiro porque deseja agradar à sua bela esposa. 

Assim, são razões estritamente pessoais (amorosas e materiais), e não artísticas, que acabam sendo os motivos pelos quais Paul mostra-se disposto a mudar o roteiro que havia escrito originalmente para o filme. 

Quanto à Fritz Lang ele deixa que o roteirista tome a decisão e reconhece que o filme pertence, de fato, ao produtor desprovido de ética que é Jeremy, mostrando que não tem poder algum sobre a obra e que fará aquilo que lhe será determinado. 
A sequência de abertura termina em tom azul. Ela representa não apenas um relacionamento feliz de Paul e Camille, mas a união entre a cultura francesa humanista, herdeira da Grécia e Roma Antigas, e o capital francês nacionalista e democrático que respeita a liberdade criativa dos artistas. 

Neste contexto, Godard está claramente usando a trama 'Le Mépris' para defender e valorizar o chamado 'Cinema de Autor' (do qual ele e os cineastas da Nouvelle Vague eram os principais representantes no início dos anos 1960), deixando claro a sua visão altamente negativa a respeito dos roteiristas, que são mostrados como mercenários que estão dispostos a mudar as histórias que escrevem em troca de um bom dinheiro. 


Godardd e os cineastas ligados à 'Nouvelle Vague' sempre foram duros críticos de um Cinema produzido sob a hegemonia dos roteiristas, o que aconteceu, principalmente, no cinema francês dos anos 1930, época que predominou o chamado 'Realismo Poético'. 

E os produtores também são exibidos como pessoas interessadas apenas no lucro que um filme poderá proporcionar e que não ligam a mínima para a relevância artística de uma obra. 

Neste contexto, o produtor Jeremy diz uma frase muito famosa, que é 'Quando ouço falar em cultura, eu saco o meu talão de cheques', o que é uma referência a uma frase muito parecida, que muitos atribuem ao líder nazista Hermann Goering, que teria dito 'Quando ouço falar em cultura, eu saco o meu revólver'. 

Obs2: Segundo Arnaldo Niskier informou, em texto publicado na 'Folha de S.Paulo' de 17/02/2004, a frase 'Quando ouço falar em cultura, saco o meu revólver' é de uma peça de teatro antinazista de autoria de Hanns Jost, que foi encenada em 1933. 
Jeremy Prokosch (interpretado por Jack Palance) é um produtor que se preocupa apenas com o lucro e que pouco se importa com a qualidade uma obra de arte. Jeremy diz que sempre que ouve a palavra cultura, ele saca o seu talão de cheques. Jeremy se considera um sucessor dos Deuses da Antiguidade, que manipulavam inteiramente aos seres humanos. 

Outro fato importante que deve ser ressaltado é que o belo 'Le Mépris' pode ser analisado sob várias perspectivas, pois temos três diferentes temas neste filme, cada um deles tratando de um conflito em particular, que estão devidamente relacionados entre si, que são: 


A) A crise e o conflito entre Paul e Camille, que leva ao fim do casamento;
B) A criação de uma obra de arte cinematográfica, com Godard defendendo o 'Cinema Autoral' e condenando o "Cinema Comercial' de Hollywood;
C) A valorização da Cultura Clássica (da Odisseia de Homero, em especial), de caráter humanista, em contraposição com a cultura moderna (Capitalista).

A primeira história mostra o relacionamento de um casal (Camille e Paul) que também se divide em três partes:

A) Inicialmente, fica claro que Paul e Camille se amam intensamente;
B) Depois, vemos o início da crise entre o casal, devido ao fato de Paul ter estimulado o envolvimento de Camille com o produtor Jeremy, que gera fortes discussões entre os dois, levando-a dizer que não o ama mais e que o despreza; 
C) E a terceira parte mostra o fim do casamento de Paul e Camille e o fim trágico que ela terá.

A belíssima cena de abertura de 'Le Mépris' é um plano longo que dura 3 minutos e 15 segundos, sendo que a mesma foi filmada em vários tons, começando com vermelho e, depois muda para branco e azul, que são as cores das bandeiras da França. Nesta cena o casal faz declarações de amor um para o outro. 
Paul estimula a sua bela esposa, Camille, a entrar no carro (Alfa Romeo) de Jeremy, como se estivesse empurrando a esposa, querendo usar a mesma para receber um pouco mais com o roteiro que escreveu para o filme 'Ulisses' que é produzido por Jeremy. No fundo vemos o cartaz do filme 'Viver a Vida', de Godard, do qual a sua esposa (Anna Karina) foi a protagonista. Inúmeros outros filmes são citados em 'Le Mépris', tais como 'Psicose' (Hitchcock) e 'Viaggio in Italia' (Rossellini). 

Paul estimula a sua bela esposa, Camille, a entrar no carro (Alfa Romeo) de Jeremy, como se estivesse empurrando a esposa, querendo usar a mesma para faturar um pouco mais com o roteiro que escreveu para o filme 'Ulisses' que será dirigido por Fritz Lang. No fundo vemos o cartaz do filme 'Viver a Vida', de Godard, do qual a sua esposa (Anna Karina) foi a protagonista.


E tal cena também mostra o lindo corpo desnudo da belíssima Brigitte Bardot e nela toca o maravilhoso 'Theme de Camille', composto por Georges Delerue, que é um dos pontos altos deste filme e que também pode ser considerada uma das obras-primas das trilhas sonoras da história do Cinema mundial. 

No filme, veremos o desenvolvimento da crise e o colapso de um casamento, que é o de Camille (Interpretada por Brigitte Bardot) e Paul (Michel Piccoli). 

A destruição deste relacionamento é provocado pela atitude de indiferença (de desprezo...) que Paul adotou em relação ao fato de que Jeremy convidou Camille para um jantar, ao qual ele iria comparecer mais tarde, como se o marido a estivesse estimulando a ter um caso com o rico e poderoso produtor. Paul age desta maneira porque deseja ser bem pago por Jeremy. 

Paul estimulou a esposa a aceitar o convite, fato este que a deixa muito triste e abalada, pois ama o seu marido imensamente e não esperava essa atitude de sua parte. Paulo praticamente a empurrou para o lado (ou para o colo...) de Jeremy, como se ele desejasse que a esposa fosse seduzida pelo endinheirado produtor.
A visão do estúdios da Cinecittà, em Roma, deixa claro a imensa diferença em relação aos cenários naturais, que foram amplamente utilizados por Godard em seus filmes. Os estúdios parecem mortos quando comparados com as locações naturais feitas em Roma e na Ilha de Capri. 

A visão do estúdios da Cinecittà, em Roma, deixa claro a imensa diferença em relação aos cenários naturais, que foram amplamente utilizados por Godard em seus filmes. 


Obs3: Nesta sequência em que Camille entra no Alfa Romeo de Jeremy vemos os cartazes de vários filmes afixados na parede e um deles é 'Vivre sa Vie' ('Viver a Vida'), produção de 1962 que teve Anna Karina, que era casada com Godard desde 1961, como protagonista. Seria essa uma maneira de Godard dizer que o filme 'Le Mépris' está, de alguma maneira, relacionado com os problemas que enfrentava no relacionamento com Anna Karina? Na época do lançamento do filme (Outubro de 1963) essa hipótese chegou a ser cogitada. Aliás, a própria Anna Karina, disse em entrevista (de Janeiro de 2016) que existem elementos do relacionamento dela com Godard que estão presentes em 'Le Mépris'. Também é interessante notar que em 'Le Mépris', Camille também usa de uma peruca na qual a cor do seu cabelo é negro, o que deixa a loura Brigitte Bardot muito parecida com Anna Karina, a esposa de Godard naquele momento. 

A atitude de Paul fará com que, a partir daí, a belíssima Camille passe a tratar o marido com indiferença e desprezo, afastando-se cada vez mais do mesmo, recusando-se até a mesmo a continuar dormindo com ele na mesma cama, inventando a desculpa de que não gosta de dormir com a janela aberta. 
No apartamento de Paul e Camille vemos a escultura que representa a Cultura Clássica, de caráter humanista, enquanto que Camille simboliza a Cultura Francesa que é a herdeira das tradições e dos valores da Grécia e da Roma Antigas

Porém, inicialmente, ela não diz qual é o verdadeiro motivo dessa atitude com o marido. Mas é claro que Paul sabe a razão deste comportamento de Camille, porém isso é algo que ele somente irá reconhecer quando ela já tinha tomado a decisão de abandoná-lo.


Camille e Paul passam boa parte do filme discutindo a respeito do motivo dela ter passado a agir desta maneira, sendo que ela acaba reconhecendo que não o ama mais e que passou a desprezar o seu marido. Afinal, ela sentiu-se desprezada pelo marido quando o mesmo não se importou com o fato de que ela fosse jantar com Jeremy. 

E durante a discussão entre Paul e Camille o movimento da câmera de Godard acompanha a fala dos dois, indo da direita para a esquerda, movimentando-se horizontalmente. Esta cena lembra um duelo ou uma partida de tênis. Logo, a cada 'disparo' ou 'raquetada' desferida por Camille ou Paul o movimento da câmera acompanhava o que eles diziam, o que é outra inovação do genial cineasta francês.

Posteriormente, em uma segunda oportunidade, quando Jeremy convida a todos (Paul, Camille, Fritz Lang) para irem juntos para a sua propriedade em Capri (ilha localizada no sul da Itália, próxima a Nápoles, e que é banhada pelo Mar Tirreno), Paul voltou a permitir que a sua jovem e belíssima esposa fosse passear no barco de Jeremy, adotando novamente uma postura de indiferença com relação ao fato de que o rico produtor dos EUA estava nitidamente interessado em seduzir a bela e sensual Camille. 
Camille passou a usar uma peruca de cabelos negros, que a deixou muito parecida com Anna Karina, que na época era casada com Godard.

Enquanto Camille e Jeremy somem no mar, com o barco dele, Paul e Fritz Lang estabelecem um paralelo entre a história de Ulisses e Penélope com a situação do casamento de Paul e Camille. Fritz Lang fala que Ulisses saiu de casa e demorou dez anos para voltar porque não amava mais a mulher. Então, foi por isso que Ulisses teria permitido que os pretendentes tentassem seduzir Penélope, mas que, depois, quando retornou para Ítaca, e para corrigir tal situação, ele percebeu que seria necessário que eliminasse os mesmos. 


Assim, é sugerido que Paul (que possui uma arma) somente irá recuperar o amor de Camille caso ele decida eliminar Jeremy. Mas isso não acabará acontecendo, pois a jovem, bela e desprezada Camille irá tirar as balas da arma de Paul.

Esta segunda iniciativa de Paul de estimular o envolvimento de Camille com Jeremy provocará o colapso final do casamento deles, fazendo com que ela decida ir embora para Roma, sozinha, com o produtor, no 'Alfa, Romeo' do mesmo. Nesta frase, Camille faz um trocadilho bem evidente, relacionando a história de 'Romeu e Julieta' com a marca de veículos italiana Alfa Romeo. Ela disse isso talvez com a intenção de deixar claro que pretendia iniciar um relacionamento com Jeremy. Mas o destino não permitirá que isso vá acontecer. 

É interessante notar que em 'Le Mépris', Camille também usa de uma peruca e na qual a cor do seu cabelo é negro, o que deixa a loura Brigitte Bardot muito parecida com Anna Karina, a esposa de Godard naquele momento. 
Camille olha, decepcionada, para Paul, que a estimulou para que ela fosse passear, sozinha, de barco com o produtor Jeremy. Esse comportamento de Paul fará com que ela decida deixá-lo. 

Talvez isso seja, inclusive, uma indicação de que o casamento do diretor com a bela e jovem atriz dinamarquesa já estivesse vivendo uma séria crise naquele momento, algo que ficou mais evidente no excepcional e belo filme 'Une Femme Mariée' ('Uma Mulher Casada'), que é uma produção de 1964, ou seja, que foi realizado um ano após a filmagem deste 'Le Mépris'. 


Obs4: Em uma sequência na qual Jeremy, Fritz Lang e Paul estão assistindo a cenas do filme de Lang vemos uma frase escrita na parede da sala, que é de autoria de Lumiere e que diz: 'O Cinema é uma invenção sem futuro'. Parece que Lumiere se enganou..

Cinema Autoral (Nouvelle Vague) X Cinema Comercial (Hollywood)!

Também é possível analisar o filme de Godard com base no conflito entre o 'Cinema Autoral' da Nouvelle Vague francesa e o 'Cinema Comercial' de Hollywood. 

Desta maneira, podemos encarar a atitude de Paul, o roteirista que aceita se vender ao produtor dos EUA, vindo de Hollywood, e que usa a esposa para seduzir o mesmo (Jeremy), como a defesa da entrega do controle do cinema francês para Hollywood. 
Visão noturna de Roma. O contraste com a cena que mostrou os estúdios da Cinecittà é marcante. A cidade transpira vida, enquanto os estúdios parecem mortos. 

Portanto, a bela Camille representaria o cinema francês que deseja permanecer sob o controle nacional, ou seja, que não aceita ser entregue ao capital vindo dos EUA (simbolizado por Jeremy).


No entanto, com base no que vimos em 'Le Mépris', Godard deixa claro que existiam, na França, setores interessados (representados por Paul) em se associar ao capital originário dos EUA. E na visão de Godard, essa atitude (de Paul), de querer entregar o controle do cinema francês (simbolizada por Camille) para os EUA (Jeremy), seria uma tragédia para a produção cinematográfica francesa, o que explicaria a sequência de encerramento do filme. 

Essa interpretação também explicaria a cena de abertura, na qual Camille e Paul estão juntos, na cama (quando aparecem as cores da bandeira francesa), e ainda demonstram que se amam intensamente, pois naquele momento ele ainda não havia aceitado a proposta de Jeremy. 

O capital francês (Paul) e o cinema francês (Camille) ainda estavam unidos, o que explica a felicidade do casal naquele momento, pois essa união é que permitiria que a França desenvolvesse um Cinema dominado por padrões artísticos elevados (ou seja, o 'Cinema Autoral' da Nouvelle Vague) e não em função de objetivos meramente comerciais (visando o lucro), que era o de Hollywood. 
O relacionamento entre Paul e Camille está em pleno processo de desintegração. Assim, ela passa a agir de maneira independente, se afastando cada vez mais do marido, ao qual passou a desprezar. 

Logo, na visão de Godard, somente com a manutenção dessa unidade nacional em torno da defesa da cultura francesa (do seu Cinema, em especial) é que o país poderia preservar a sua liberdade e criar uma arte verdadeira, não comercial, sem ser controlada por produtores ambiciosos e que não possuem qualquer preocupação artística. 


Cultura Clássica X Cultura Moderna!

A jovem e bela Camille representa o cinema francês, a cultura nacional francesa, orgulhosa das suas realizações e da sua história, e que também é apresentada como sendo a herdeira e a representante de uma Cultura Clássica, originária da Grécia e da Roma da Antiguidade. 

Em diversos momentos do filme vemos Godard defendendo essa visão, como na sequência do apartamento, em que Paul e Camille discutem a respeito dos problemas que o seu casamento está enfrentando. 

Nesta sequência, a imagem de Camille lembra, claramente, a escultura feminina que aparece em muitos momentos desta sequência. Ela também é mostrada folheando um livro de fotos que reproduzem imagens dos antigos romanos fazendo amor. 
Paul admite, finalmente, que sabe o real motivo que levou Camille a ter passado a sentir desprezo por ele. 

Paul, por sua vez, aparece usando uma toalha para cobrir o seu corpo e que lembra, claramente, as roupas usadas pelos antigos gregos e romanos.


Portanto, para Godard, a cultura francesa (simbolizada por Camille) é a herdeira desta antiga cultura greco-romana e os franceses tem a missão de garantir que os valores da mesma sejam preservados, o que a coloca em conflito com a cultura moderna, capitalista, baseada nas regras do livre-mercado e que visa apenas obter o máximo de lucros e que, no filme, é simbolizada pelo personagem do autoritário produtor Jeremy. 

E o final do filme mostra que, para Godard, caso a cultura francesa e o Cinema francês, em especial, passem a se guiar pelos interesses dos capitalistas isso representará a destruição desta rica e valiosa tradição cultural e humanista.

Portanto, não é à toa que este clássico e belo filme de Godard é considerado, por muitos, um dos seus melhores trabalhos, bem como também é um dos mais importantes filmes do Pós-Guerra. 
Camille, no Alfa Romeo de Jeremy, foge para Roma. Mas a fuga terminará em tragédia. Godard, portanto, está dizendo que, a união entre o capital estrangeiro, que visa apenas o lucro, com a cultura francesa humanista, será catastrófica para a França. 

Informações Adicionais!


Título: Le Mépris ('O Desprezo');
Diretor: Jean-Luc Godard;
Roteiro: Jean-Luc Godard (baseado em livro 'Il Disprezzo', de Alberto Moravia, de 1954);
País de Produção: França e Itália;
Ano de Produção: 1963;
Duração: 103 minutos;
Gênero: Romance; Drama; 
Música: Georges Delerue;
Fotografia: Raoul Coutard;
Elenco: Brigitte Bardot (Camille Javal); Michel Piccoli (Paul Javal); Fritz Lang (ele mesmo); Jack Palance (Jeremy Prokosch); Giorgia Moll (Francesca Vanini); Jean-Luc Godard (assistente de Fritz Lang).
No 'filme dentro do filme' Ulisses volta para Ítaca, em pose triunfal, representando a vitória do Cinema Autoral (Nouvelle Vague), de inspiração humanista, sobre o Cinema Comercial de Hollywood, que visa apenas o lucro. 

Links:


Entrevista com Anna Karina; Ela comenta sobre a relação com Godard na época da produção de 'Le Mépris':

http://www.anothermag.com/design-living/8242/anna-karina-talks-bardot-and-inspiring-jean-luc-godard

Anna Karina comenta sobre seu trabalho e relacionamento com Godard:

https://www.comunidadeculturaearte.com/anna-karina-relembra-a-sua-vida-com-jean-luc-godard/

Godard, o reinventor do Cinema:

http://miltonribeiro.sul21.com.br/2010/11/07/o-reinventor-do-cinema/

Anna Karina:

http://miltonribeiro.sul21.com.br/2009/10/10/porque-hoje-e-sabado-anna-karina/

Texto de Arnaldo Niskier:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200410.htm

Bande à Part:

http://popeseries.blogspot.com/2016/06/filme-bande-part-ou-godard-reinventando.html

Trecho do Filme (Georges Delerue - Theme de Camille):



quinta-feira, 22 de novembro de 2018

'Hôtel du Nord': Carné deu continuidade à 'Trilogia da Fatalidade' com um novo clássico sobre o pessimismo e a tragédia na França dos anos 1930! - Marcos Doniseti!

'Hôtel du Nord': Carné deu continuidade à 'Trilogia da Fatalidade' com um novo clássico sobre o pessimismo e a tragédia na França dos anos 1930! - Marcos Doniseti!
'Hôtel du Nord' é uma produção de 1938, tendo sido realizado logo após o clássico 'Le Quai des Brumes' (Cais das Sombras). A sua atmosfera pessimista e melancólia reflete o estado de espírito dos franceses nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, na qual a França foi facilmente derrotada e conquistada pela Alemanha Nazista.  

O Contexto Histórico!

Este belo filme de Marcel Carné faz parte do ciclo do chamado 'Realismo Poético Francês', que foi um dos principais e mais influentes movimentos da história do Cinema e que se desenvolveu na década de 1930, especialmente entre 1934 e 1940, ou seja, no período que antecede a invasão da França pela Alemanha Nazista e que resultou na mais humilhante derrota militar francesa de sua história.

'Hôtel du Nord' deu continuidade ao que poderíamos denominar de 'Trilogia da Fatalidade', que começou com um dos maiores clássicos do Cinema mundial, que foi 'Le Quai des Brumes' (Cais das Sombras, de 1938, que já foi comentado aqui no blog) e que foi concluída com mais uma obra genial, o também belo 'Le Jour Se Lève' ('Trágico Amanhecer', de 1939).

Em dois destes três filmes tivemos Jean Gabin na condição de protagonista e Jacques Prévert como roteirista. 'Hôtel du Nord' é o único dos três em que isso não aconteceu, o que não impediu que também se tornasse um clássico. 

A expressão 'Trilogia da Fatalidade', que utilizei para me referir a esses três clássicos de Carné, deve-se ao fato de que existe, sem dúvida alguma, uma conexão entre essas belas obras do genial cineasta francês, que é o sentimento de tristeza, melancolia, pessimismo e de fatalidade que está presente em todos.
Renée e Pierre sentados no banco da praça localizada em frente ao 'Hôtel du Nord', com uma expressão de desalento e desespero.

Tais sentimentos eram muito fortes na França dos anos 1930, que foi uma década caracterizada por uma intensa fragmentação e radicalização política e ideológica da sociedade francesa, bem como pelas consequências bastante negativas da Grande Depressão e da ascensão do Nazi-Fascismo na Europa.

Na França as consequências da Grande Depressão foram mais duradouras do que em outros países, pois os governos franceses da época deram prioridade para o controle da inflação e dos gastos públicos e não para o crescimento econômico e para a geração de empregos (tal como fez Roosevelt nos EUA, por meio do 'New Deal'), seguindo uma política recessiva, que manteve o país estagnado e com elevados índices de desemprego, de pobreza e de miséria durante toda a década de 1930.

Além disso, a sociedade francesa assistiu ao enfraquecimento dos partidos políticos centristas moderados e ao fortalecimento dos partidos de Extrema-Direita, que eram racistas, antissemitas e antissocialistas.

Entre as principais forças políticas de Extrema-Direita francesas do período, nós tivemos:

A) Partido Popular Francês, liderado por Jacques Doriot;
B) Ação Francesa, liderada por Charles Maurras;
C) Partido Social Francês, liderado por François de La Rocque.


Moradores do 'Hôtel du Nord', em Paris, são representantes das camadas populares francesas dos anos 1930. Eles eram os protagonistas de muitos filmes do chamado 'Realismo Poético Francês'. 
O partido liderado por François de La Rocque foi o mais bem sucedido de todos os movimentos de Extrema-Direita franceses e desfrutou de grande popularidade no final dos anos 1930, possuindo boas chances de ganhar as eleições previstas para 1940, mas que não se realizaram devido à invasão e conquista da França pelos nazistas alemães. 

Na França, durante a mesma década de 1930, também tivemos um significativo crescimento dos partidos de Esquerda, que eram Socialistas, Comunistas e Radicais, que se uniram e formaram a chamada "Frente Popular". Em Maio de 1936, essa 'Frente Popular' venceu as eleições (por estreita margem de votos) para o governo do país.

A 'Frente Popular' era formada por socialistas, comunistas e radicais, sendo que o primeiro-ministro era Léon Blum, um socialista e judeu que era odiado pelos extremistas da Direita francesa pela sua origem e ideologia. O ódio da Direita e da Extrema-Direita francesas contra o governo da Frente Popular era tão forte que o seu slogan passou a ser 'Antes Hitler do que a Frente Popular'.

Tal simpatia pelo Nazi-Fascismo e o apoio que a Extrema-Direita deu à ocupação do país pelos alemães fez com que ela se tornasse uma força política minúscula durante cerca de 25 anos. Somente nos anos 1970, com o aumento da imigração originária das antigas colônias francesas é que ela irá renascer. 

"L'Humanité", jornal do Partido Comunista Francês, comemora as conquistas dos trabalhadores franceses que foram reconhecidos pelos 'Acordos de Matignon', de Junho de 1936.
Com a vitória eleitoral da Frente Popular, em Maio de 1936, tivemos a conquista e o reconhecimento de inúmeros direitos sociais e trabalhistas e que foram definidos nos chamados 'Acordos de Matignon', tais como:

A) Adoção da jornada de 8 horas diárias e das 40 horas semanais;
B) Férias remuneradas de 15 dias anuais;
C) Liberdade sindical;
D) Criação dos Contratos Coletivos de Trabalho entre empresas e trabalhadores;
E) Nacionalização dos bancos, indústria bélica e das ferrovias;
F) Criação dos delegados sindicais;
G) Aumentos de Salários entre 7% e 15%.

Tais conquistas foram resultado de greves que mobilizaram vários milhões de trabalhadores franceses e que se realizaram em Maio-Junho de 1936, logo após a vitória da 'Frente Popular' nas eleições. 

Com todas essas conquistas por parte dos trabalhadores, o governo da Frente Popular enfrentou duros ataques por parte das forças direitistas e retrógradas do país, que repudiavam o reconhecimento de tais conquistas. 
A prostitura Raymonde e seu amante (Edmond) instalam-se no 'Hôtel du Nord'. Eles mal sabiam que suas vidas mudariam muito a partir daí. 
Mas as grandes divisões internas entre as forças políticas que a formavam acabaram levando ao fim do governo da Frente Popular, em 1938, pois os liberais centristas do Partido Radical rejeitavam a mobilização crescente dos trabalhadores franceses, que realizaram maciços movimentos grevistas e manifestações imensas neste período. 

Todos estes conflitos políticos e sociais dividiram e enfraqueceram o país e acabaram por impedir que a França tivesse uma atuação política significativa durante a ascensão do Nazi-Fascismo na Europa durante toda a década de 1930, pois as forças da Direita barravam qualquer ação dos governos franceses que pudessem resultar no enfraquecimento dos regimes Nazista e Fascista, de Hitler e Mussolini, por quem os direitistas franceses nutriam uma grande simpatia.

Tal situação de forte polarização política, social e ideológica também impediu que a França se preparasse de forma adequada para a Segunda Guerra Mundial, pois apesar de ter um Exército mais numeroso e melhor equipado do que o da Alemanha Nazista, havia muitos simpatizantes do Nazi-Fascismo no sistema político e no Exército franceses.

Assim, quando ocorreu a invasão da França pelos alemães, em Maio de 1940, um dos poucos generais franceses, se não foi o único, que lutou, de fato, contra os nazistas foi Charles de Gaulle. Já os demais...

Renée e Pierre chegam ao 'Hôtel du Nord' e as suas expressões facial e corporal denunciam os sentimentos de desânimos e desalento que os aflige. 

O Realismo Poético Francês!

Compreender o contexto histórico dos anos 1930 é essencial para se entender o desenvolvimento do chamado 'Realismo Poético Francês', bem como a 'Trilogia da Fatalidade' de Marcel Carné, pois nestes filmes fica mais do que evidente todo o clima de pessimismo, tristeza, fraqueza, divisão, melancolia e de fatalidade que atingiu a França nos anos imediatamente anteriores ao início da Segunda Guerra 
Mundial.

O 'Realismo Poético Francês' foi um movimento cinematográfico que se desenvolveu durante os anos 1930 e tem entre os seus principais nomes alguns dos mais importantes cineastas da história, incluindo Jean Renoir, Jean Vigo, Jacques Feyder, Julien Duvivier e, é claro, Marcel Carné.

Os filmes deste gênero mostravam a situação de divisão, fraqueza e pessimismo que assolava todas as classes sociais francesas da época, inclusive os trabalhadores e os grupos marginalizados, tais como os bêbados, prostitutas, homossexuais, ladrões, órfãos, entre outros.

Assim, a partir de 1934, quando Jean Vigo realizou "L'Atalante', o cinema francês passou a exibir a vida das camadas populares nas telas do cinema, mostrando a difícil situação de pobreza, desemprego, miséria, abandono e desprezo que os trabalhadores e setores marginalizados do país enfrentavam neste período, bem como as histórias de amor frustradas nas quais eles se envolviam.
Pierre e Renée no quarto do 'Hôtel du Nord', local em que irão tentar colocar em prática o seu 'Pacto de Morte'.

O amor era visto, inclusive, por muitas pessoas como a única possibilidade de redenção, de desfrutar de alguma felicidade em meio a uma vida tão difícil quanto a que enfrentavam naquela época, que se caracterizava por crise econômica e social, desemprego, pobreza, desprezo, criminalidade e intensos conflitos políticos e ideológicos.

Logo, um ampla e variada gama de personagens que é altamente representativa das camadas populares está presente nos filmes do 'Realismo Poético': Operários, desertores, suicidas, bêbados, prostitutas, ladrões baratos, órfãos, pequenos gângsters e cafetões são alguns dos protagonistas dos filmes do gênero.

Entre os cenários nos quais as tramas se desenvolvem temos hotéis baratos, bares isolados, zonas portuárias, bordeis, estações de trem, que são os locais frequentados pelos personagens perdidos, desolados, explorados, solitários e desesperados que são os protagonistas das obras do 'Realismo Poético'

E junto com estes personagens desesperados e cenários desoladores (que eram parte naturais e parte feitos em estúdios) temos histórias com finais quase sempre trágicos e isso acontecia mesmo quando os protagonistas faziam de tudo para escapar dos mesmos, tentando evitar um destino que já estava definido. 
Pierre e Renée se amam intensamente, mas não vêem futuro para suas vidas miseráveis e solitárias.

O crítico Ronald Bergan apresentou a seguinte definição a respeito do Realismo Poético Francês: "O termo realismo poético descreve um conjunto de filmes franceses realizados entre 1934 e 1940, que combinava o realismo com um estilo lírico de cinema. A atmosfera fatalista e sombria, criada pela luz e pela decoração impressionistas, prenunciou o cinema noir".

Logo, toda essa atmosfera que é marcada pelos sentimentos de melancolia, frustração e fatalidade esteve presente na produção dos filmes do 'Realismo Poético' francês durante os trágicos anos 1930.

E um dos diálogos mais memoráveis da história do cinema é o que vemos neste 'Hôtel du Nord', quando Edmond diz que deseja se separar de Raymonde em função da atmosfera que ela simboliza em sua vida. Ele quer ir embora com Renée, por quem se apaixonou, mas Raymonde não aceita.  

Uma importante inovação nos filmes do 'Realismo Poético' é que tais filmes deram muito destaque aos roteiristas, o que foi resultado da criação do cinema falado. Com a introdução da fala no cinema, a partir de 1927, inúmeros jornalistas e escritores passaram a ser contratados para escrever os roteiros dos filmes e no 'Realismo Poético' eles tiveram um papel fundamental. E também inúmeras obras literárias passaram a ser adaptadas para o Cinema. 
Edmond encontra o copor de Renée no quarto, pensando que ela está morta. Posteriormente ele irá se apaixonar pela bela jovem, o que irá mudar radicalmente a sua vida. 

O poeta e escritor Jacques Prévert foi um dos mais requisitados para escrever roteiros para os filmes franceses, principalmente por Marcel Carné, com o qual colaborou em inúmeros filmes, durante e após o período áureo do Realismo Poético, incluindo os clássicos 'Le Quai des Brumes' (1938) e 'Le Jour Se Lève' (1939), primeiro e terceiro filmes desta 'Trilogia da Fatalidade'.

Porém, é bom ressaltar que os cineastas do Realismo Poético também promoveram inovações formais, na maneira de se contar as histórias dos seus filmes.

Um claro exemplo disso nós tivemos em 'Le Jour Se Lève' (1939), terceiro filme desta 'Trilogia', no qual Marcel Carné fez uso do recurso do flashback, algo que é bastante normal atualmente (Chris Carter utilizou muito deste recurso em 'Arquivo X', inclusive na última temporada da série, exibida em 2018), mas que nos anos 1930 foi uma grande novidade.

É bom também ressaltar para o fato de que o Realismo Poético Francês acabou influenciando fortemente outros gêneros cinematográficos muito relevantes e que foram o Neo-Realismo Italiano e o 'Film Noir'. Aliás, o cineasta italiano Luchino Visconti (um dos criadores do Neo-Realismo) chegou a trabalhar como assistente de Jean Renoir em 'Toni' (1935) e em 'Um Dia no Campo' (1936).

Portanto, o 'Realismo Poético' foi inovador tanto no aspecto formal, como no de conteúdo, exercendo ainda uma significativa influência na produção cinematográfica mundial nas décadas seguintes. 
Populares se aglomeram em frente ao 'Hôtel du Nord', em função da suposta morte de Renée.

A trama do filme!

A cena de abertura mostra o cenário no qual quase a maior parte das ações do filme irão se desenvolver, que é o 'Hôtel du Nord' e a pequena praça localizada logo à frente do mesmo. Nela, vemos um casal de jovens namorados (Pierre e Renée), andando de maneira desolada e sentando em um banco, com uma expressão triste e melancólica em seus rostos.

Eles estão juntos há apenas um ano e se amam intensamente, mas o pessimismo quanto ao futuro os levará a tomar uma drástica decisão, que é a de fazer um pacto de morte.

Pierre era um desenhista que havia saído de um orfanato há pouco tempo quando conheceu Renée, que era uma jovem de 21 anos que também havia ficado em um orfanato e que não passava de uma triste e solitária balconista vivendo em Paris, ganhando um baixo salário pelo trabalho realizado. Assim, ela mudou de emprego e passou a viver de posar para artistas. 
Investigador da Polícia conversa com Edmond a respeito da 'morte' de Renée, enquanto Raymonde observa a conversa ao fundo.

Logo, eles são duas pessoas tristes, pobres, solitárias e que se apaixonam, acreditando que o amor que sentem um pelo outro irá dar um sentido para suas vidas desesperadas.

Na sequência vemos os proprietários e os moradores do hotel jantando, sendo que um deles é Manolo, um adolescente que se assustou com um grande estrondo. A dona do hotel explica que isso é um reflexo da época em que ele vivia em Barcelona, na época da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), período no qual ele ficou órfão.

A Guerra Civil Espanhola foi um acontecimento que teve um grande impacto social e político na França, pois a guerra na Espanha começou quando as forças reacionárias do pais (Igreja, Latifundiários, Exército), que eram lideradas por Franco, não aceitaram o resultado da eleição que havia levado a 'Frente Popular' ao comando do governo.

O governo da 'Frente Popular' da França ainda tentou, de várias maneiras, ajudar o governo republicano espanhol, mas as pressões do reacionário governo britânico que, por baixo dos panos, apoiava Franco, impediram que tal ajuda atingisse um nível suficiente para que pudesse impedir a vitória franquista. 

Trecho de livro de George Orwell, sobre a sua vida na França, em 1928, diz o seguinte: "Você descobre o que é sentir fome. Com pão e margarina no estômago, sai e olha as vitrines... Você descobre o tédio que é inseparável da pobreza, nas vezes em que não tem nada para fazer e, mal alimentado, não consegue se interessar por nada". Qualquer semelhança com os filmes do 'Realismo Poético' não é mera coincidência. 

Durante e após a Guerra Civil Espanhola, centenas de milhares de espanhóis (principalmente bascos e catalães, que lutaram contra Franco desde o início da guerra) atravessaram a fronteira e foram morar na França, em condições precárias, principalmente nos últimos meses do brutal conflito (no qual morreram cerca de 500 mil espanhóis).

Em 1939, as tropas franquistas avançaram e conquistaram a Catalunha, que foi o último bastião de resistência das forças Republicanas democráticas (que reunia socialista, comunistas, anarquistas e liberais).

É bom ressaltar que essa vitória somente foi possível graças ao imenso apoio que as forças de Franco receberam (em armas e soldados) da Alemanha Nazista e da Itália Fascista (Mussolini enviou 70 mil italianos para lutar na Espanha). Inclusive, uma das mais famosas ações das forças nazi-fascistas na Espanha foi a destruição da cidade basca de Guernica pela aviação alemã (pela 'Legião Condor') e que deu origem ao famoso quadro de Picasso.

Aliás, este foi o primeiro grande bombardeio de uma cidade na Europa, ou seja, que tinha a população civil como alvo, algo que se tornou bastante comum durante a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Civil Espanhola foi usada, principalmente pelos nazi-fascistas italianos e alemães, como um campo de teste para novos armamentos e novas estratégias de guerra, como o bombardeio de cidades. 
Pierre envolto em brumas intensas, o que expressa o seu estado de espírito naquele momento, quando pensava em cometer suicídio, pois acreditava que havia assassinado Renée, a mulher que amava.

Obs1: Durante a ocupação alemã da França um oficial nazista perguntou a Picasso se ele mesmo é que havia pintado 'Guernica' e o genial pintor respondeu "Não. Foram vocês".

Dois dos principais personagens do filme são Edmond, que é um cafetão que vive de explorar o trabalho de Raymonde, a prostituta que é apaixonada por ele e da qual ele se aproveita. E os diálogos entre Raymonde e Edmond são dos melhores atributos do filme.

Eles se instalam no 'Hôtel du Nord' e Raymonde sai para 'trabalhar' enquanto ele fica no hotel. Edmond e Raymonde também são duas pessoas perdidas e solitárias, que não tem mais ninguém no mundo, e que (tal como Pierre e Renée) se uniram para conseguir sobreviver.

Edmond é um antigo gângster que passou os seus dois antigos amigos de roubos e falcatruas para trás, delatando-os para a Polícia. E agora os dois estão à sua procura.

Porém, Edmond tratou de mudar radicalmente a sua personalidade, o seu nome (que, antes, era Paulo), o seu jeito de viver e de se apresentar, passando a usar boas roupas e adotando uma postura mais agressiva, chegando a matar animais com as próprias mãos, sendo que antigamente ele não suportava ver sangue. 
Edmond, solitário, sobre uma ponte em Paris. Esta é mais uma das muitas belas cenas deste clássico de Marcel Carné. 

Um dos personagens, ao ficar sabendo disso, diz aquela que é uma das melhores frases do filme, que é 'Alguns dão o sangue, enquanto que outros o derramam', o que pode ser encarado, também, como uma referência à ascensão do Nazi-Fascismo na Europa, pois os regimes de Hitler e de Mussolini exaltavam a guerra e a violência.

Uma outra dupla de protagonistas do filme é formada pela jovem e bonita Renée e por Pierre, um casal de namorados apaixonados que não tem nenhuma perspectiva na vida e que, em função disso, fazem um pacto de morte. Eles combinam de se instalar no hotel para que Pierre possa matar Renée e se suicidar posteriormente.

Porém, os planos da dupla fracassam, pois ela sobrevive ao tiro, enquanto que ele acaba sendo preso por assassinato. Durante boa parte do filme vemos duas versões sobre quem desferiu o tiro, se foi Pierre ou a própria Renée. Cada um deles procurava assumir a culpa pelo disparo, tentando proteger o outro.

Edmond acabou ouvindo o tiro que havia sido disparado por Pierre, foi até o quarto em que o casal estava, mas permitiu que o mesmo fosse embora. Depois, quando é interrogado pela Polícia, Edmond acabou omitindo que havia encontrado Pierre segurando a arma. 
Emile e Louise são os donos do 'Hôtel du Nord' que, com seu espírito humanitário, oferecem um emprego para Renée.

Isso mostra que existe uma natural desconfiança das camadas populares em relação à Polícia e que também existe uma espécie de 'acordo de cavalheiros', uma conexão, entre os deserdados e desesperados da Terra. É como se eles terminassem por se reconhecer como tais e, assim, acabassem por se ajudar em função disso. E assim eles tentam manter a Polícia o mais longe possível de suas vidas. Afinal, quando ela aparece é para levá-los presos.

Esse natural preconceito policial com relação às camadas populares fica evidente quando, embora seja Edmond, por ter encontrado o corpo, que acabe sendo interrogado pela Polícia, quem é levada presa é Raymonde, o que a leva a dizer, ao policial, 'Pode gritar. Foi uma bela prisão'.

Logo, Raymonde acaba usando de ironia para dizer que, na verdade, a Polícia a estava levando apenas para mostrar às pessoas do local que alguém estava sendo preso, como se os policiais estivessem fazendo bem o seu trabalho de investigação, que mal havia começado.

Renée sobrevive ao pacto de morte e volta para o hotel, no qual começará a trabalhar, pois os donos são um casal de idosos de espírito humanitário que decide ajudá-la a retomar a sua vida. Ela também visitará Pierre, na prisão, depois que este decidiu se entregar para a Polícia e reconheceu que havia sido o responsável por atirar em Renée. 
Um desempregado, sozinho, em um banco de uma praça de Paris. Essa imagem era bastante comum na França dos anos 1930, o que era um dos principais motivos para os sentimentos de pessimismo e desânimo quanto ao futuro por parte da maioria dos franceses. 

Na prisão, Renée acaba falando, para o ex-namorado, que gostaria de retomar o relacionamento, mas o mesmo manifesta sentir profunda vergonha pelo fato de não ter cumprido com a sua parte no 'pacto de morte'. Ela diz que já esqueceu de tudo, mas Pierre responde dizendo 'É preciso dois para se esquecer'.

Ela tenta convencer Pierre de que eles são vítimas e cúmplices do que fizeram, mas que não são culpados. O diálogo de Renée e Pierre é um dos melhores e mais bonitos momentos deste belo filme de Carné.

Renée acaba atraindo o interesse de Kenel, um solteiro que gosta de conquistar as mulheres (uma espécie de 'Casanova Proletário') e que dorme com Ginette, esposa de seu amigo... Mas ela não é boba e já está sabendo tudo a respeito da fama dele e o mantém a distância. Porém, Ginette vê o que ele fez e acaba indo embora do Hotel, abandonando o marido e também a Kenel.

E o cafetão Edmond também irá acabar se apaixonando por Renée, não escondendo de ninguém, nem dela mesma, os sentimentos que tem pela bonita jovem, embora ele tenha dificuldades para dizer a frase 'eu te amo', mas que acabará falando.
Kenel (o 'Casanova Proletário') tenta conquistar Renée, mas ela já conhece a fama dele e o rejeita. Ao fundo vemos uma prostituta encostada na parede, esperando por clientes.

Edmond chega a convencer Renée a ir embora para Marselha, juntos, o que fará com que Raymonde fique desesperada. Edmond deixa claro que não gosta da vida que leva e que deseja se separar de Raymonde. Ele demonstra ter certeza de que, ao lado de Renée, poderá encontrar a felicidade que tanto deseja e sonha. Durante essa conversa ele pergunta para Raymonde se ela gosta da vida que tem e a mesma responde 'Deixando de lado o que é ruim, o resto é bom'.

Edmond diz para a ex-companheira que ele precisa de uma nova atmosfera em sua vida e que ela simboliza uma atmosfera (ou seja, uma vida) a qual ele deseja deixar para trás, levando-a a perguntar 'Atmosfera! Atmosfera! E eu tenho cara de atmosfera?', em uma frase que entrou para a história do Cinema.

Depois, Raymonde fala para Renée que esta mudou Edmond, que foi contaminado com a doença do suicídio, fazendo com que ele começasse a pensar. 

Assim, diz Raymonde, ele voltou a ser mesma pessoa que era antes de conhecê-la e que o mesmo passou a não sentir mais prazer em nada. E Raymonde fala para Renée 'Você é uma atmosfera incomum'...
Edmond diz que precisa mudar de atmosfera, pois diz que se sente sufocado por Raymonde. Ela contesta, perguntando "Atmosfera! Atmosfera! Eu tenho cara de atmosfera?'.

Quando a dupla de gângsters, aos quais Edmond traiu, aparece no hotel a fim de acertar as contas com ele, inicialmente Raymonde o protegeu, dizendo que não sabia onde o mesmo se encontrava, mas depois, quando viu que Edmond não a desejava mais, ela acabou por dizer aos bandidos que Edmond estava morando ali mesmo, no hotel.


Edmond chegou a embarcar no navio para Marselha, junto com Renée, mas esta acabou desistindo, pois não conseguia esquecer de Pierre e acabou indo visitar o mesmo na prisão novamente para lhe dizer isso. E Renée reconhece que deu esperança para Edmond, o que foi pior que matá-lo.

Mas foi exatamente isso que ela acabou fazendo, pois Edmond foi de encontro à morte quando ficou sabendo que estava sendo procurado pelos gângsters aos quais traiu anos antes. A traição de Raymonde e o abandondo de Renée levaram Edmond à morte, pois sem o amor desta última a vida não tinha mais sentido para ele.

Pierre é libertado e retoma o seu romance com Renée. Em meio à festa do 14 de Julho (data nacional francesa) eles estão sentados no banco da praça que fica em frente ao hotel, e ela diz uma frase, que é 'Le Jour Se Lève' (o dia está nascendo). 
Edmond tenta convencer Renée a ficar junto com ele, mas ela só tem pensamentos para Pierre.

E 'Le Jour Se Lève' será o título do terceiro e último filme desta bela trilogia de Carné. Teria sido mera coincidência? Entendo que não, pois o mesmo foi filmado já no ano seguinte, em 1939.

E Renée também diz, para Pierre, que aquele é o fim do 'Hôtel du Nord', anunciando, ao mesmo tempo, o fim do filme, mas também deixando claro que eles irão iniciar uma nova fase em suas vidas e na qual ambos serão felizes.

Diálogo:

Arletty: Não gosta da sua vida?
Edmond: Você gosta?
Arletty: Eu tenho que. Acostumei-me. Deixando de lado o que é ruim, o resto é bom. Brigamos, mas chegamos a bom termo na cama. E então?
Edmond: Então, nada. Estou cheio disso. Sinto-me sufocado. Entendeu? Sufocado.
Arletty: Em Toulon o ar é bom, você respirará melhor.
Edmond: Onde quer que se vá sentiremos a podridão.
Arletty: Vamos ao estrangeiro, às colônias.
Edmond: Com você?
Arletty: Porque não?
Edmond: Eu preciso mudar de atmosfera e minha atmosfera é você.
Arletty: É a primeira vez que me chamam de atmosfera. Se eu sou uma atmosfera você é um povoado esquisito... Atmosfera? Atmosfera? Pareço com uma atmosfera? Vá sozinho. Aproveite a pescaria e a sua atmosfera.

Edmond, depois que não conseguiu convencer Renée a ficar com ele, vai ao encontro da morte. 

Informações Adicionais!

Título: Hôtel du Nord ('Hotel do Norte');
Diretor: Marcel Carné;
Roteiro: Jean Aurenche e Henri Jeanson; Baseado em livro de autoria de Eugene Dàbit;

País de Produção: França; 
Ano de Produção: 1938;
Duração: 95 minutos; Gênero: Drama;
Música: Maurice Jaubert;
Fotografia: Louis Née e Armand Thirard;
Elenco: Annabella (Renée); Jean-Pierre Aumont (Pierre); Louis Jouvet (Edmond); Arletty (Raymonde); Paulette Dubost (Ginette); Andrex (Kenel); André Brunot (Emile Lecouvreur, dono do hotel); Jane Marken (Louise Lecouvreur, dona do hotel); Henri Bosc (Nazarède); Armand Lurville (Investigador); Bernard Blier (Prosper); François Périer (Adrien); Marcel André (Cirurgião).

Renée e Pierre, alegres e sorridentes, voltam a ficar juntos, acreditando que poderão ser felizes novamente.    

Links:

Informações sobre o filme:

https://www.imdb.com/title/tt0030252/?ref_=ttfc_fc_tt

O trágico no Realismo Poético:

http://www.rua.ufscar.br/o-tragico-no-realismo-poetico/

A Extrema-Direita na história da França:

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2904200207.htm

Os acordos de Matignon:

https://noseahistoria.wordpress.com/2013/11/24/governos-da-frente-popular/

Trecho do Filme: