'También la Lluvia' é um dos melhores filmes políticos a que já assisti, sem dúvida, até hoje. E ele consegue ser político sem ser chato ou panfletário, muito pelo contrário.
A trama filme se passa na Bolívia, sendo inteiramente baseado em uma história real, que entrou para a história com o nome de "Guerra da Água'. Esta aconteceu em Cochabamba, durante a época em que o país foi vítima das políticas neoliberais impostas pelos EUA e pelo FMI.
No filme, vemos uma equipe de produção espanhola que vai até a Bolívia a fim de fazer um filme a respeito da chegada de Cristóvão Colombo à América (1492). O fato de que os índios com os quais Colombo estabeleceu contato eram das Antilhas e não da Bolívia não vem ao caso...
O diretor do filme é Sebastián (Gael García Bernal) e o produtor do mesmo é Costa. Quando iniciam o trabalho de filmagem eles acabam se relacionando com os bolivianos de forma muito semelhante àquela que Colombo e os espanhóis o fizeram no final do século XV e nos séculos seguintes.
Iciar Bollain, a diretora do filme 'También la Lluvia', trabalhou no filme 'Terra e Liberdade', de Ken Loach. |
Tal relação era marcada pela exploração da força de trabalho extremamente barata do país, que servia apenas para gerar lucros e riquezas para a Coroa espanhola e para a Burguesia metropolitana.
Assim, o produtor Costa se gaba pelo fato de que pode contratar bolivianos para trabalhar como extras no filme pela módica quantia de US$ 2 diários. Sua preocupação limita-se a produzir o filme e em recuperar o investimento feito na produção do mesmo, tal como os espanhóis, portugueses e outros europeus que conquistaram e exploraram a América o fizeram por entre 300 e 400 anos.
Logo, o filme de Iciar Bollain estabelece uma conexão direta entre a exploração colonial que vitimou a Bolívia e a América Latina durante mais de 300 anos e o processo de imposição de políticas neoliberais, que são uma espécie de atualização daquelas políticas coloniais.
Afinal, a maior parte das empresas estatais (de energia, petróleo, telecomunicações, bancos, etc) e das riquezas naturais (petróleo, terras, minérios) dos países da América Latina foram compradas justamente por empresas multinacionais da Europa e dos EUA.
A Revolução Nacionalista e Reformista de 1952 e o Governo Neoliberal de Paz Estenssoro (1985-1990)!
Como resultado das medidas que foram adotadas pelo governo de Victor Paz Estenssoro e, depois, de Hugo Banzer e Gonzalo S. de Lozada, tivemos um processo por meio qual as políticas neoliberais foram adotadas na Bolívia e que foram impostas por meio de políticas recessivas e repressivas.
Isso resultou nas privatizações de praticamente todas as empresas públicas bolivianas, incluindo a empresa de abastecimento de água da cidade Cochabamba (SEMAPA), que acabou sendo comprada por uma empresa dos EUA (Bechtel).
Tais políticas começaram a ser implementadas pelo governo de Estenssoro, um antigo líder político revolucionário que governou o país em quatro oportunidades, embora o seu segundo mandato tenha durado poucos meses (Agosto a Novembro de 1964), pois foi derrubado por um Golpe Militar muito parecido com o brasileiro do mesmo ano.
Em 1952 ele foi o principal líder de uma Revolução que o transformou no principal líder político radical da América Latina, até que tivemos a Revolução Cubana, da qual emergiram Fidel Castro e Che Guevara como figuras mais populares, influentes e carismáticas do que Estenssoro.
Estenssoro era o principal líder do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário).
O governo revolucionário de Estenssoro (1952-1956) nacionalizou as minas de estanho, fez uma significativa reforma agrária e concedeu cidadania aos indígenas bolivianos, que representavam 80% da população. Seu governo contava com o apoio e a participação de forças operárias e de Esquerda, do COB (Central Operária Boliviana) e do trotskista 'Partido Operário Revolucionário'.
Em 1985, Estenssoro voltou a se eleger Presidente, em um ambiente de profunda crise econômica e social, sendo que a Bolívia era assolada por altíssimas taxas de inflação, uma dívida externa imensa e elevados níveis de pobreza e de miséria. A expectativa, em função do seu passado político, é que Estenssoro adotaria políticas reformistas que beneficiariam a maioria da população.
Mas não foi isso que aconteceu e no fim Estenssoro acabou adotando um programa econômico neoliberal que jamais teria sido aprovado pelos eleitores caso ele o tivesse defendido durante a campanha eleitoral.
Assim, ainda antes de tomar posse, Estenssoro decidiu promover a adoção de políticas neoliberais radicais, que foram 'sugeridas' pelo FMI, por economistas neoliberais e pelo governo dos EUA. A ideia era impor uma 'terapia de choque' tão forte na economia que as pessoas ficariam atordoadas com as mudanças e, assim, não conseguiriam resistir à mesma.
Desta maneira, ele impôs um choque brutal na economia do país: arrocho salarial, abertura para produtos importados, privatizações, aumento de tarifas, fim dos subsídios aos alimentos, liberação dos preços, aumento de 300% no preço do combustível, cortes drásticos dos gastos públicos.
Com isso, o custo social e econômico das medidas recaiu inteiramente sobre os trabalhadores e os mais pobres.
Assim, os salários reais chegaram a diminuir 70% e a taxa de desemprego chegou a 30%. A renda dos camponeses bolivianos, em 1987, dois anos após a 'terapia de choque' ter sido adotada, era de US$ 140 anuais. Empregos de tempo integral e com direitos sociais e previdenciários foram substituídos por empregos precários, sem qualquer proteção.
Tais medidas foram sugeridas por um economista estadunidense chamado Jeffrey Sachs, que sugeriu uma 'terapia de choque' para enterrar a hiperinflação no país (a inflação chegou a 14.000% em 1985), que havia sido gerada, principalmente, pela erradicação das plantações da folha de coca.
Até 1984, a economia da Bolívia era fortemente dependente do negócio da coca, que respondia por grande parte das exportações do país, mas a brutal repressão que o Exército promoveu contra as plantações de folha de coca (devido às pressões e exigências do governo de Ronald Reagan) gerou uma redução de 50% no valor das mesmas.
Isso levou a uma brutal desvalorização da moeda nacional e a uma explosão inflacionária, gerando um processo hiperinflacionário.
Para viabilizar tais medidas da 'terapia de choque', que acabaram sendo muito mais radicais do que o próprio Sachs defendia, Estenssoro manteve em segredo a elaboração das medidas, que eram ignoradas até mesmo pelos líderes do MNR. E para isso, ele também teve que dar as costas aos antigos movimentos sociais (sindicalistas, em especial) que o apoiaram desde a Revolução de 1952, bem como promoveu uma brutal repressão contra os mesmos.
No fim, a adoção da 'terapia de choque' neoliberal levou a que centenas de milhares de bolivianos se voltassem para a plantação da folha de coca como meio de sobrevivência, apesar da forte repressão do governo à atividade. Em 1987, a exportação de drogas respondia por mais da metade das exportações do país. Foi isso que permitiu que os camponeses e o povo suportassem os efeitos sociais e econômicos brutais da 'terapia de choque'.
E para tornar possível tal 'terapia de choque', o governo de Estenssoro reprimiu brutalmente os movimentos sociais, que haviam promovido o início de uma greve geral e organizado inúmeras manifestações populares. Assim, Estenssoro chegou a decretar 'estado de sítio' e mandou o Exército reprimir as manifestações (qualquer semelhança com o governo de Temer não é mera coincidência).
Estenssoro também proibiu qualquer manifestação ou passeata, e a Polícia passou a fazer batidas frequentes em universidades, sindicatos, estações de rádio, fábricas, bem como passou a atirar em manifestantes e grevistas. Assim, 1500 manifestantes foram presos, sendo que os 200 líderes sindicais mais importantes do país foram presos e levados para prisões remotas da Amazônia, onde ficaram totalmente isolados. E a libertação dos mesmos foi condicionada à não realização de greves e protestos por parte dos sindicatos.
O 'estado de sítio' vigorou por 3 meses e, assim, a oposição política foi virtualmente banida na Bolívia que, na prática, virou uma Ditadura.
O plano neoliberal radical que o governo de Estenssoro impôs à Bolívia mostrou que o mesmo somente poderia vingar se as liberdades democráticas fossem eliminadas e uma Ditadura fosse imposta ao país e seu povo. E assim foi feito.
Na década de 1990, um novo governo Neoliberal (de Gonzalo Sanchez de Lozada, que participou da implementação das políticas neoliberais do governo de Estenssoro) aprofundou as políticas favoráveis ao livre-mercado que Estenssoro havia imposto, de forma extremamente autoritária, promovendo a privatização desnacionalizante das principais estatais bolivianas (gás, ferrovias, petróleo, aviação, telecomunicações).
A Guerra da Água!
A 'Guerra da Água' foi o nome que se deu a uma verdadeira rebelião popular que ocorreu em Cochabamba (terceira maior cidade boliviana, com cerca de 630 mil habitantes, localizada a leste da Cordilheira dos Andes). O conflito se desenvolveu durante todo o ano 2000 em Cochabamba, cidade que passa por um período de inverno extremamente seco.
Na época, uma empresa multinacional dos EUA (Bechtel) comprou (em 1999) a empresa de tratamento de esgoto e abastecimento de água (SEMAPA). A privatização da empresa foi feita sob pressão do FMI e do Banco Mundial (dois organismos internacionais que são controlados pelos EUA e pela UE).
Logo depois da aquisição da SEMAPA, a Bechtel elevou a tarifa de água em 100%, da noite para o dia. Isso desencadeou uma verdadeira insurreição popular na cidade, ainda mais depois que a empresa começou a tapar os poços que a população da cidade começou a cavar para guardar a água da chuva, pois o miserável povo boliviano não tinha dinheiro suficiente para pagar tão caro pela água.
Com isso, a população da cidade criou um órgão (Coordenador de Águas de Cochabamba) que passou a comandar as manifestações e protestos contra a medida tomada pela empresa dos EUA, que elevou os preços da tarifa de água com a conivência do governo boliviano.
Gradualmente, as manifestações foram ganhando uma dimensão cada vez maior, mobilizando dezenas de milhares de pessoas, que eram violentamente reprimidas pela Polícia.
Cochabamba se transformou, assim, em uma verdadeira praça de guerra. Mas a luta do povo da cidade foi mais do que recompensada, pois a empresa multinacional dos EUA (Bechtel) desistiu da concessão (que deveria durar 40 anos) e devolveu a empresa (SEMAPA) para o governo da cidade.
Equipe de produção do filme sobre Colombo assiste, pela TV, aos conflitos que acontecem em Cochabamba, onde a Polícia reprime violentamente as manifestações populares. |
Logo, foi graças à união e luta povo de Cochabamba que foi possível derrotar aos interesses do Grande Capital, que desejava usar de um bem essencial à vida da população (a água) para lucrar cada vez mais às custas da miséria da imensa maioria da população.
Assim, a água voltou a pertencer à população da cidade.
O filme sobre Colombo e o documentário sobre o mesmo: Filmes dentro do filme 'También la Lluvia'!
No filme, vemos o gradual e progressivo envolvimento da equipe de produção espanhola com os acontecimentos que ocorriam em Cochabamba, cidade na qual se realizavam as filmagens, que eram comandadas pelo diretor (Sebastián) e pelo produtor (Costa).
No início, a equipe de produção se concentrava apenas na realização do filme, pouco se importando com o que acontecia na cidade. Porém, a contratação de um jovem local (Daniel) para desempenhar um importante no filme acabou mudando toda a situação, pois ele também era um dos principais líderes das manifestações populares.
Além disso, a jovem Maria, integrante da equipe de produção espanhola, que inicialmente estava fazendo um documentário sobre a realização do filme a respeito da chegada de Colombo, mudou o foco do seu trabalho e passou a filmar as manifestações populares que ocorrem na cidade contra a privatização e desnacionalização da água.
População de Cochabamba bloqueou as principais ruas e avenidas da cidade. Conflito foi intenso entre Janeiro e Abril do ano 2000, quando finalmente a empresa Bechtel desistiu da concessão. |
Com isso, de forma gradual, os fatos que ocorriam na cidade acabaram afetando a produção do filme, pois a repressão do governo boliviano contra os manifestações foi bastante forte, transformando a cidade em uma verdadeira zona de guerra. Os manifestantes promoviam bloqueios de ruas e avenidas e reuniam um número cada vez maior de pessoas em seus protestos.
Tudo isso acabou prejudicando a produção do filme, até porque o ator/líder (Daniel) acabou sendo preso pela Polícia.
Para conseguir que o mesmo participasse de uma cena que era essencial para a realização do filme sobre a chegada de Colombo, o produtor (Costa) subornou o chefe de Polícia da cidade, permitindo que Daniel fosse liberado. Mas o acordo determinava que, após a realização da filmagem, Daniel voltaria a ser preso, o que gerou uma forte discussão entre Sebastián e Costa.
A equipe de produção do filme sobre Colombo é recebida pelo governante da cidade, que é o responsável pela privatização dos servidos de água e esgoto. O mesmo usa de um discurso de total desprezo pelas manifestações populares, demonstrando claramente que defende os interesses da empresa ianque (Bechtel).
Repressão policial contra as manifestações populares transformou Cochabamba em uma praça de guerra. |
Assim, Sebastián e Costa vão se envolvendo cada vez mais com os acontecimentos e também com a família de Daniel, sendo que a esposa do mesmo (Teresa) pedindo a ajuda dos dois para encontrar a filha deles (Belén) e levá-la para um hospital, pois a garota tinha se ferido gravemente na manifestação.
O produtor (Costa), em especial, acaba se identificando com a luta do povo boliviano contra as medidas que a empresa multinacional havia tomado (aumento de tarifa e controle da água da chuva que caía nos poços) e contra a fortíssima repressão policial que se abateu contra os manifestantes. Logo, Costa irá ajudar Teresa, o que permitirá que esta encontre a filha (Belén) e leve a mesma para o hospital, salvando a vida da jovem.
Os membros da equipe espanhola finalmente conseguem sair da cidade, apesar de todo o caos em que a mesma mergulhara em função dos conflitos. E o produtor Costa recebe um presente de Daniel... um pouco de água.
Como afirmou Daniel no início do filme: Água é Vida!
Fim.
A cidade de Cochabamba, terceira maior da Bolívia, com cerca de 630 mil habitantes, onde tivemos a 'Guerra da Água'. |
Obs1: O excepcional filme 'También la Lluvia' demonstra, de forma bem clara, o quanto um processo de privatização que atende apenas aos interesses do Grande Capital globalizado é extremamente prejudicial aos interesses da imensa maioria da população, principalmente dos trabalhadores e dos mais pobres.
Neste sentido, o filme de Iciar Bollain é bastante didático sobre os efeitos da imposição das políticas neoliberais, privatizantes e desnacionalizantes, e deveria ser visto pela população brasileira pois, neste momento, o Brasil passa por um processo de implantação de um projeto Neoliberal e Entreguista (que foi derrotado em 4 eleições presidenciais consecutivas) que possui características semelhantes ao que foi imposto ao povo da cidade de Cochabamba.
Informações Adicionais:
Título: También la Lluvia (A Chuva Também; Conflito das Águas);
Diretora: Iciar Bollain;
Roteiro: Paul Laverty;
País de Produção: Espanha; Duração: 103 minutos;
Ano de Produção: 2010; Gênero: Drama Político;
Música: Alberto Iglesias; Fotografia: Alex Catalán;
Elenco: Gael García Bernal (Sebastián); Luis Tosar (Costa); Juan Carlos Aduviri (Daniel/Atuey); Karra Elejalde (Antón/Colón); Raul Arévalo (Juan/Montesinos); Carlos Santos (Alberto/Las Casas); Cassandra Ciangherotti (Maria); Milena Soliz (Belén/Panuca); Leónidas Chiri (Teresa); Ezequiel Díaz (Bruno).
Prêmios: Melhor Filme Latino-Americano de 2011 (Ariel Awards, México);
Festival de Berlim de 2011: Melhor Filme de Ficção da Mostra Panorama);
Goya Awards 2011: Melhor Ator Coadjuvante; Melhor Música Original; Melhor Direção de Produção.
Costa com a água que ganhou de presente de Daniel. |
Links:
Victor Paz Estenssoro:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2001/010607_estensoro.shtml
Água deve ser para os povos e não de empresa, diz líder da 'Guerra da Água':
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/40513/agua+deve+ser+para+os+povos+e+nao+de+empresas+diz+lider+da+guerra+de+cochabamba.shtml
A privatização da água em Cochabamba:
https://www.ecodebate.com.br/2010/03/01/cochabamba-guerra-da-agua-completa-10-anos/
O que aconteceu na Bolívia (ano 2000) ocorre de forma ainda mais dura no Brasil:
https://www.brasildefato.com.br/2017/03/24/privatizacao-da-agua-o-que-aconteceu-na-bolivia-ocorre-aqui-com-maior-dureza/
Tese de Mestrado: A Guerra da Água em Cochabamba:
http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/3998
Bolívia - Breve histórico do Neoliberalismo:
http://operamundi.uol.com.br/blog/samuel/agora/bolivia-1995-breve-historico-do-neoliberalismo/
Manifestação popular na época da 'Guerra da Água', em Cochabamba. |
Trailer do Filme:
2 comentários:
Ótimas indicações de filmes documentais! Nos fazem refletir sobre a atual situação da sociedade. Além destes, sugiro a produção A Cordilheira. Apesar de todos os filmes sugeridos, este pode ser considerado um dos melhores filmes argentinos . Com uma história envolvente, trata da situação política e os interesses envolvidos em alianças políticas. Em paralelo, é retratada a relação entre pai e filha e seus dilemas. Aliás, a atuação de Dolores Fonzi, no papel de Marina, merece destaque, sendo um papel bem maduro.
Obrigado pela indicação a respeito do filme 'A Cordilheira'. Irei pesquisar a respeito. Volte sempre ao blog.
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