Por muitos anos este clássico filme de Roberto Rossellini foi considerado como sendo o marco inicial do Neorrealismo italiano. No entanto, atualmente isso não acontece mais, pois tivemos várias produções que antecederam ‘Roma, Cidade Aberta’ e que já possuíam várias das características fundamentais do Neo-Realismo.
Nesta lista de filmes pioneiros do Neorrealismo, o mais sério candidato a ser considerado como o primeiro longa-metragem do ‘movimento’ é ‘Ossessione’, de Luchino Visconti, produção de 1943 que foi baseada no livro policial Noir ‘O Destino Bate à Sua Porta’, de James M. Cain.
‘Ossessione’ (1943) foi o primeiro filme ao qual se aplicou a expressão ‘Neorrealismo’, o que foi feito por Mario Serandrei, montador do filme de Visconti.
A respeito deste filme, o crítico Gian Piero Brunetta disse o seguinte: “O primeiro longa-metragem de Visconti já havia se tornado uma obra-manifesto não só do trabalho do grupo que gravita em torno dele, mas de uma série de forças esparsas que tinham tentado realizar um projeto de poética cinematográfica alternativo em relação aos modelos propostos pelo regime com as grandes tradições do naturalismo literário do século XIX”.
Obs1: Essa afirmação de Gian P. Brunetta foi retirada do livro 'História do Cinema Mundial' (org. de Fernando Mascarello; pág. 200).
O chefe de Polícia de Roma e o líder da SS (Major Bergmann) na capital italiana se reuniam com frequência, mostrando o colaboracionismo dos Fascistas com os ocupantes alemães. |
Na revista existia um grupo de intelectuais esquerdistas ou comunistas que era tolerado pelo regime Fascista e que era integrado por Giuseppe De Santis, Gianni Puccini e Mario Alicata. Posteriormente, Luchino Visconti juntou-se ao grupo.
Este grupo defendia que o Cinema italiano passasse a mostrar a realidade social do país e também o povo italiano, com todos os problemas e dificuldades que enfrentava em sua vida. A fonte de inspiração para esse grupo eram os livros de Giovanni Verga, principal integrante de um movimento literário italiano chamado de ‘Verismo’.
A ideia inicial de Luchino Visconti era adaptar um livro de Verga para o Cinema, mas isso não foi possível. Com isso, ele escolheu o romance de James M. Cain para fazer o filme ‘Ossessione’, mas sem dar os devidos créditos ao escritor estadunidense, pois temia que a censura fascista o proibisse.
A miséria na Itália era uma realidade que atingia a maioria da população na época da Segunda Guerra Mundial. No desespero, as pessoas furtavam alimentos de mercados e padarias. |
“O contato físico da câmera com as personagens e a perfeita integração com espaços, lugares e paisagens capazes de se tornarem parte integrante da história, de proporcionarem olhares inéditos da realidade italiana, de desestruturarem os estereótipos visuais até então adotados para contar histórias dramáticas, fazem de Ossessione o ponto de chegada de uma longa pesquisa e, ao mesmo tempo, o modelo para uma nova geração de intelectuais, aos olhos dos quais o filme marca oficialmente o nascimento do novo cinema italiano. "Neo-realismo" é o título de um artigo de Umberto Bárbaro, de 1943.”. (Brunetta in Fabris et ai. 2002, p. 13, referindo-se à resenha de 'Quai des Brumes' - 'Cais das Sombras', Marcel Carné, 1938 - publicada na revista 'Film' em 5 de junho de 1943).
Obs2: Trecho retirado do capítulo ‘Neo-Realismo Italiano’, de autoria de Mariarosaria Fabris, que integra o livro ‘História do Cinema Mundial’ (org. de Fernando Mascarello). Os filmes ‘Cais das Sombras’ (Marcel Carné, 1938) e ‘Ossessione’ (Luchino Visconti, 1943) já foram comentados aqui no blog.
É bom ressaltar que os próprios cineastas que eram ligados ao ‘movimento’ tinham divergências a respeito das origens do Neo-Realismo, mas tanto Rossellini quanto Visconti diziam que já existiam elementos Neo-Realistas no cinema produzido na Itália dos anos 1930-1940.
Além disso, o trabalho de Alberto Lattuada como fotógrafo, que procurava manter 'viva a relação do homem com as coisas', e de cineastas como Francesco De Robertis, Luciano Emmer, Enrico Gras, Francesco Pasionetti, Giovanni Paolucci, Giacomo Pozzi Bellini, Michelangelo Antonioni e de Roberto Rossellini com documentários também contribuíram para a gênese do Neorrealismo.
Aliás, a imagem cinzenta que vemos em muitos filmes Neo-Realistas (como ocorre neste ‘Roma, Cidade Aberta') tem a sua origem em documentários feitos por estes diretores.
E o cineasta Francesco De Robertis dirigia, já no início da década de 1940, documentários filmados em cenários reais e com o uso de atores não-profissionais, duas características importantes do Neorrealismo.
Portanto, quando Visconti fez ‘Ossessione’ (1943) e Rossellini dirigiu ‘Roma, Cidade Aberta’ (1945) isso foi resultado de toda uma trajetória de debate, pesquisa e inovação que se desenvolvia na Itália desde os anos 1930 e que se intensificou nos anos finais do regime Fascista, quando o colapso do mesmo já se aproximava.
As vergonhosas e humilhantes derrotas da Itália durante a Segunda Guerra Mundial (na Grécia, por exemplo) acabaram por mostrar o quanto o regime Fascista vivia em função de propaganda e de promessas irrealistas e fizeram com que o mesmo perdesse muita popularidade.
A fragilidade e enganação do discurso de Mussolini, que prometia transformar a Itália em um grande, rico e poderoso Império (restaurando o Império Romano), ficaram mais do que evidentes. Isso fez com que a popularidade de Mussolini e do Fascismo desmoronassem na Itália.
Neste contexto, portanto, mostrar a realidade em que o povo italiano vivia naquela época era um ato virtualmente revolucionário.
Assim, não foi à toa que ao assistir ‘Ossessione’, Vittorio Mussolini disse que ‘Esta não é a Itália’, pois o filme mostrava uma sociedade marcada pela pobreza, desemprego, desigualdades, criminalidade, prostituição, tudo aquilo que o regime Fascista procurava esconder da população italiana. E é claro que a exibição de ‘Ossessione’ foi proibida pelo regime Fascista.
‘Roma, Cidade Aberta’, por sua vez, foi realizado no segundo semestre de 1945, quando o Nazi-Fascismo já havia sido definitivamente derrotado na Itália e na Europa.
A trama do filme!
A trama do filme mostra o período de nove meses (Julho de 1943 a Abril de 1944) em que a cidade de Roma esteva sob a ocupação nazi-fascista, período no qual existiu um forte e ativo movimento de Resistência, do qual participavam liberais, socialistas, comunistas, anarquistas, católicos. Inclusive, alguns ex-Fascistas ou membros da Milícia fascista chegaram a se integrar ao mesmo.
A Resistência italiana procurava agir para ajudar a futura invasão da cidade de Roma pelas tropas aliadas, sendo que em um momento do filme um morador da capital italiana pergunta se os americanos ‘existem mesmo’, devido à ansiedade da população da cidade, que desejava que eles chegassem o mais cedo possível.
Logo, foi neste momento histórico, de luta contra o Nazi-Fascismo, em que se forjou uma ampla aliança política e social na Itália, que se formou um governo de ‘União Nacional’, que irá durar de 1945 a 1947.
Pina é uma miserável operária (tecelã) que faz parte da Resistência, tal como o Padre Dom Pietro. Ambos pagarão caro por seu envolvimento na luta popular contra os Nazistas. |
Com isso, a Itália passou a ter um governo conservador e direitista, que passou a perseguir e a censurar as produções Neo-Realistas e que priorizou totalmente a importação de filmes de Hollywood. Estes filmes mostravam uma vida idealizada, de luxo e riqueza, destacando apenas a vida da burguesia.
Desta maneira, a partir de 1948, o povo italiano foi excluído das principais telas de Cinema, pois as produções Neo-Realistas eram censuradas e ficaram relegadas às pequenas salas de exibição.
O povo e o seu cotidiano marcado por grandes dificuldades não aparecia nos mesmos, tal como ocorreu durante o regime Fascista, no qual a imensa maioria dos filmes produzidos eram puramente escapistas e mostravam uma Itália idealizada.
Assim, o Cinema, na Itália, regrediu à mesma situação que existia na época do regime Fascista, quando a ‘Cinecittà’ criada por Mussolini também priorizava a produção destes filmes tipicamente escapistas, chamados de ‘Telefone Bianchi’.
Obs3: Estes filmes italianos do estilo ‘Telefone Bianchi’ (telefones brancos), que foram produzidos na época do regime Fascista, já foram comentados em outros textos publicados aqui no blog.
A história de ‘Roma, Cidade Aberta’ gira em torno de cidadãos comuns que lutam contra a violência e o arbítrio do Nazi-Fascismo. São mulheres, homens, membros da Igreja, policiais comuns, adolescentes que lutam por Justiça e Liberdade.
Um dos protagonistas do filme é Dom Pietro, um padre que integra o movimento de Resistência. Ele ajuda e protege os membros do movimento que são perseguidos pelos Nazi-Fascistas, escondendo os mesmos em mosteiros.
Muitos destes integrantes da Resistência são comunistas, o que é o caso de Giorgio Manfredi e de Francesco, mas para o Padre Pietro a luta por justiça está acima de eventuais diferenças ideológicas ou religiosas. O padre Pietro vê os membros da Resistência como figuras autenticamente cristãs, pois Cristo também lutou e foi perseguido e assassinado por um dos mais brutais Impérios da história, que foi o Romano.
Inclusive, a ampla aliança política antifascista existente na Itália e que engloba os mais variados movimentos políticos e segmentos sociais do país fica bem nítida em uma cena na qual o chefe da SS em Roma (Bergmann) folheia vários jornais da Resistência: “L’Unità’ (Comunista); ‘Avanti’ (Socialista); ‘Resistência Liberal’ (Liberal, é claro), entre outros.
O filme começa mostrando um plano geral da cidade de Roma e soldados alemães marchando e cantando, mostrando a realidade da ocupação nazista. E fica muito evidente desde o começo a situação de pobreza e miséria em que o povo italiano vive.
Para poder comer, muitos deles promovem roubos em padarias. E a Polícia italiana faz vistas grossas para essas situações. Afinal, muitos policiais são amigos destes italianos famintos e passam por dificuldades semelhantes. Até mesmo o sacristão participa dessa ação.
E mesmo nesta situação trágica que o povo italiano vive, há espaço para o humor no filme de Rossellini. Em uma das cenas, quando um adolescente (Marcello) vê o Sacristão com inúmeros pães e este diz que conseguiu os mesmos em uma ‘festa’, o garoto diz ‘espero que a minha mãe tenha ficado sabendo desta festa’.
Em outro momento do filme, o Padre Pietro vai a uma loja se encontrar com um membro da Resistência e na mesma vemos a imagem de um santo católico e uma estátua de uma mulher nua (reprodução da arte da Antiguidade). Incomodado, o Padre Pietro vira as estátuas, fazendo com que elas não fiquem voltadas uma para a outra.
Desesperada, Pina sai correndo quando vê que o seu noivo, Francesco, foi preso pelos Nazistas. Posteriormente, ele foi libertado devido a uma ação da Resistência italiana. |
Uma das protagonistas da trama é a operária Pina (interpretada por Anna Magnani), que é uma mulher forte e ativa, bastante atuante na Resistência, que trabalhava numa indústria de tecidos que foi destruída durante a Guerra.
Pina e a sua família dão abrigo a um fugitivo, um importante líder da Resistência, que é Giorgio Manfredi. Este namora uma dançarina italiana (Marina), que tem uma amiga (Ingrid) que é colaboradora da SS alemã, fato este que a dançarina não desconhece. Mesmo assim ela mantém a amizade com Ingrid, pois a mesma lhe fornece drogas e roupas chiques em troca de informações que Marina fornece a respeito dos membros da Resistência.
Marina fica preocupada com o fato de que Manfredi mandou avisar que eles não poderão se ver por vários dias. Descuidada, ela telefona para o local em que ele está escondido, o que coloca a segurança dele em risco, pois os telefones são grampeados pela SS.
Foi assim que Giorgio Manfredi, importante líder da Resistência italiana, ficou após ser submetido à brutais torturas pelos nazistas. |
Ingrid, a 'namorada' de Bergmann, suborna Marina com drogas e também com casacos de pele luxuosos e belas roupas que, com certeza, os nazistas roubaram de famílias que foram perseguidas e eliminadas por eles, principalmente de judeus.
Outro membro ativo da Resistência é Francesco, que está prestes a se casar com Pina. Mas no dia do casamento, a Polícia fascista e a SS nazista fazem uma ‘batida’ na região em que ela mora. Desesperada com o fato de que Francesco é levado preso, ela fica indignada com isso e acaba sendo assassinada pelos Nazistas. Mas uma ação bastante ousada da Resistência irá atacar alguns caminhões que levavam prisioneiros e Francesco acabará sendo libertado.
O filho de Pina (Marcello), ainda criança, também faz parte de uma espécie de ‘Resistência Infanto-Juvenil’, uma ‘organização’ informal que promove ações violentas contra os Nazi-Fascistas e que é liderada por um adolescente chamado Romoletto. Este é uma espécie de herói para Marcello.
Francesco termina recebendo ajuda de Manfredi, que o abriga na residência da sua namorada (Marina). Porém, esta não é confiável, pois dá um grande valor aos bens materiais e usa drogas, sendo que ela vive numa região rica e possui uma boa residência e belas roupas graças ao fato de ter praticado a prostituição e de ser subornada por Ingrid.
Esta fraqueza de Marina por bens materiais e por drogas acaba sendo devidamente explorada por Ingrid (que se sente atraída por Marina), que colabora com o chefe da SS (o afeminado Bergmann).
Ingrid dá um belo casaco de peles para Marina depois que ela entregou a localização de Manfredi, de Francesco e do Padre. Marina chora, arrependida, mas já é tarde demais, pois dois deles (Manfredi e o Padre Pietro) acabaram sendo presos pela SS.
Bergmann, o chefe da SS em Roma, também conta com a total colaboração do Comissário de Polícia fascista, que o bajula o tempo inteiro. Enquanto Bergmann faz as suas reuniões, a tortura é uma prática rotineira no edifício da SS, o que chega a incomodá-lo.
No fim, Manfredi resiste heroicamente às torturas e acaba sendo morto em função das mesmas, o desertor austríaco comete suicídio e o Padre Pietro é executado por um oficial nazista, pois os soldados italianos acabaram se recusando a fuzilar o mesmo.
E os adolescentes que participam da Resistência vão embora, tristes, devido à morte do Padre do qual eles tanto gostavam. Mas a tarefa de reconstruir a Itália no Pós-Guerra será deles. E as marcas que a Guerra deixou em todos eles não irão abandoná-los.
Informações Adicionais!
Título: Roma Città Aperta (Roma, Cidade Aberta);
Diretor: Roberto Rossellini;
Roteiro: R. Rossellini, F.Fellini, Sergio Amidei;
Ano de Produção: 1945; País de Produção: Itália;
Fotografia: Ubaldo Arata; Música: Renzo Rossellini;
Gênero: Drama; Guerra; Duração: 103 minutos;
Elenco: Anna Magnani (Pina); Marcelo Pagliero (Giorgio Manfredi/Luigi Ferraris); Francesco Grandjacquet (Francesco); Aldo Fabrizi (Padre Dom Pietro Pellegrini); Harry Feist (Major Bergmann, chefe da SS); Giovanna Galletti (Ingrid, namorada de Bergmann); Maria Michi (Marina, dançarina); Nando Bruno (Agostino, sacristão); Vito Annichiarico (Marcello, filho de Pina); Eduardo Passarelli (Policial do bairro); Carla Rovere (Lauretta, irmã de Pina); Carlo Sindici (Comissário de Polícia de Roma); Ákos Tolnay (desertor austríaco);Turi Pandolfini (Avô).
Prêmios: Grande Prêmio do Festival de Cannes de 1946.
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