domingo, 29 de janeiro de 2017

'A Dupla Vida de Véronique': Kieslowski fez uma obra-prima sobre vida, morte, destino, tragédia, acaso e livre-arbítrio! - Marcos Doniseti!

'A Dupla Vida de Véronique': Kieslowski fez uma obra-prima sobre vida, morte, destino, tragédia, acaso e livre-arbítrio! - Marcos Doniseti!
'La Double Vie de Véronique' (1991) é um filme belo, poético, romântico, trágico, melancólico, filosófico e misterioso do genial Kieslowski, que foi um dos mais importantes cineastas da história.

A formação e a trajetória de Kieslowski!

Krzysztof Kieslowski
foi mais um dos talentosos e criativos cineastas poloneses do Pós-Guerra. Ele se formou na famosa Escola de Cinema de Lodz, onde também estudaram Andrzej Wajda e Roman Polanski.


Kieslowski começou a filmar documentários em 1966 e somente na década de 1980 é que ele passou a se dedicar a realizar filmes ficcionais que, no entanto, estão intimamente relacionados ao momento histórico vivido pelos poloneses naquela época, em que o regime do 'Socialismo Real' enfrentava uma grave crise política, econômica e social, o que gerou a criação do movimento 'Solidariedade', liderado por Lech Walesa.

Esse movimento conquistou o apoio da quase totalidade dos poloneses, o que provocou a derrubada do governo 'comunista' em 1990, quando o o povo polonês elegeu um novo governo e Walesa tornou-se o novo Presidente do país. 

Os filmes de Kieslowski eram bastante críticos em relação ao sistema político, econômico e social dominante na Polônia entre 1945-1990 e justamente por isso é que os seus filmes eram frequentemente censurados. O filme 'Przypadek' ('Sorte Cega'), por exemplo, foi realizado em 1981 mas somente foi liberado pelo governo polonês em 1987. 

Após a realização de uma série de ótimos filmes e de uma monumental série de TV ('Dekalog'), que foi baseada nos Dez mandamentos, mas que tratava da vida humana no mundo atual, com seus dilemas, conflitos, angústias e contradições, a fama de Kieslowski atravessou fronteiras, consagrando-o como um dos principais cineastas contemporâneos, recebendo vários prêmios internacionais importantes (no Festival de Cannes, por exemplo).
A jovem e bela polonesa Weronika viaja para Cracóvia, de trem, enquanto observa as estrelas verde e vermelha dentro da pequena esfera.

Com a consagração de 'Dekalog', Kieslowski foi convidado para trabalhar na França, mas sem que isso significasse cortar inteiramente os laços com a sua terra natal, a Polônia. 


Essa dualidade pode ser claramente notada, inclusive, na produção de seu primeiro filme 'francês', que é esta obra-prima chamada 'A Dupla Vida de Véronique', pois a história do filme se desenvolve em dois países (Polônia e França), com duas personagens que são idênticas, não apenas nos aspectos físicos, mas também espirituais.

A protagonista do filme, interpretada pela bela e talentosa Irene Jacob, é uma jovem formada em Música. Mas acontece que a protagonista não é apenas uma, mas duas pessoas e que se chamam Weronika (a jovem polonesa) e Véronique (a jovem francesa).


As duas bonitas jovens nasceram no mesmo dia, mês e ano (23/11/1966), mas em duas cidades diferentes (Varsóvia e Paris) e ambas se formaram em Música. E o que acontecia na vida de uma delas, acabava se refletindo na vida da outra, em vários momentos, como se elas estivessem interligadas por tênues fios invisíveis. Inclusive, ambas sofriam dos mesmos problemas cardíacos, que acabará sendo fatal para uma delas. 

Cena na qual a imagem parece distorcida, como se estivesse mostrando uma outra realidade. 

Assim, quando Weronika, ainda criança (com apenas dois anos de idade), queimou a mão, Véronique quase fez o mesmo, em Paris, dias depois, mas evitou de fazer isso ao retirar a sua mão no último momento, embora não soubesse, é claro, o que havia acontecido com Weronika, a milhares de quilômetros de distância. Mas o que havia ocorrido com Weronika acabou evitando que ela fizesse a mesma coisa. 


Essa conexão entre as duas jovens (uma polonesa e outra francesa) pode ser interpretada de várias maneiras, pois essa é uma característica dos filmes do genial Kieslowski, ou seja, ele apresenta uma série de questões, mostra a sua visão dos acontecimentos, mas deixa espaço em sua obra para que aqueles que assistem aos seus filmes possam interpreta-la à sua própria maneira.


Tal conexão pode ser vista, por exemplo, como uma ligação espiritual que existiria entre as duas jovens, o que explicaria o fato de que aquilo que acontecia com uma, acabava mexendo com as sensações e sentimentos da outra. 


Weronika, por exemplo, diz ao seu pai que sente que não está sozinha no mundo. Ele responde que ela não está, mesmo, demonstrando não compreender o que a sua filha havia dito. 


E muitos pequenos detalhes também mostram essa conexão entre elas. 

Momento em que Weronika vê, pela primeira e única vez, a francesa Véronique junto com o grupo de turistas, que está correndo para entrar no ônibus, enquanto estudantes e policiais entram em conflito na praça de Cracóvia. 

Assim, quando o namorado de Weronika (Antek) fica hospedado em um hotel de Cracóvia, para onde ela viajou, o número do quarto é 287. 
Enquanto isso, quando Véronique se hospeda em um hotel de Paris, enquanto era perseguida por Alexandre (por quem estava apaixonada, mas que a havia decepcionado), o número do quarto no qual ela fica também é o de número 287. 


Logo, vemos em vários momentos do filme que as duas personagens estão ligadas por formas de comunicação não-verbais. E esta duplicidade das protagonistas é representada pelo uso das cores vermelha e verde. As duas cores aparecem o tempo inteiro, do início ao fim do filme, representando a ligação existente entre as duas jovens. 


No filme, também temos um único momento no qual as duas estiveram bem próximas. Isso ocorreu quando Véronique fez uma viagem pela Polônia, Hungria e Tchecoslováquia. 


E vemos que Véronique esteve em Cracóvia, em uma praça na qual ocorria uma manifestação estudantil que protestava contra o governo do país, Weronika percebe a presença de Véronique, que não a vê em nenhum momento e que está entrando em um ônibus de turistas (enquanto fotografava o povo na praça). Weronika fica olhando para Véronique, surpresa, sem acreditar no que estava acontecendo, mas Véronique não a vê. 

A francesa Véronique, dentro do ônibus, em Cracóvia. Ela fotografou Weronika, mas somente irá perceber isso mais adiante, graças à Alexandre. 

Posteriormente, somente no final do filme, é que Véronique irá se dar conta de que esteve na mesma praça em que Weronika se encontrava, ao mesmo tempo que a jovem polonesa. 


Além da conexão espiritual, uma outra possível explicação para essa duplicidade e para a conexão existente entre Weronika/Véronique é o mito europeu do doppelganger, que surgiu no século XIX e que possui origem germânica. Este mito diz que todos nós temos um duplo, que é idêntico em tudo a nós, não apenas nos aspectos físicos, mas também nos espirituais, bem como nas características de nossa personalidade.  


E duas outras possíveis explicações podem ser usadas para entender a relação existente entre a polonesa Weronika e a francesa Véronique, que vivem a uma imensa distância uma da outra, mesmo sendo tão semelhantes em praticamente tudo, que são: A) Universos Paralelos; B) Entrelaçamento Quântico.


Se o filme de Kieslowski fosse de ficção científica, então a teoria dos Universos Paralelos (Teoria dos Muitos Mundos ou do Multiverso, elaborada pelo físico Hugh Everett, em 1954) poderia ser aplicada para explicar a conexão entre as duas jovens. Segundo esta teoria, o nosso Universo não é o único. Existiriam muitos outros Universos, nos quais teríamos réplicas da Terra e de nós mesmos. E estas nossas réplicas seria muito semelhantes a nós, nos aspectos físicos, espirituais, aspectos da personalidade. 

Momento em que Weronika vê, em Cracóvia, Véronique dentro do ônibus de turistas. Ao fundo uma tropa da Polícia, que está reprimindo uma manifestação estudantil contra o governo polonês. 

Aliás, há um momento no filme no qual essa possibilidade parecer estar sendo sugerida por Kieslowski, que ocorre quando Weronika está viajando de trem para Cracóvia e olha pelo vidro e a imagem é um pouco modificada, como se estivesse mostrando a imagem de uma outra realidade, de um mundo alternativo. 


E uma última possibilidade para explicar essa forte ligação que temos entre Weronika/Véronique é a ideia do Entrelaçamento Quântico, a qual Einstein chamou, de forma irônica e espirituosa, de 'Ação Fantasmagórica à Distância'. 


Segundo este aspecto da Física Quântica, dois elétrons podem estar separados por uma gigantesca distância no espaço, mas o que acontece com um acaba refletindo no outro, independente do quão distantes possam estar. Einstein contestou tal ideia, porque ela violava a lei da Física que diz que nada pode viajar mais rápido do que a Luz. 


Mas o genial Einstein se enganou e, agora, é reconhecido que o Entrelaçamento Quântico realmente existe. Assim, há uma influência mútua entre tudo o que existe no Universo, não importando qual seja a distância que exista entre os diferentes objetos.  

A mulher misteriosa que vê Weronika sendo aceita como a nova soprano da Orquestra, na Polônia. Depois que Weronika morre, ela estará em Paris, onde ficará espantada ao se encontrar com Véronique e verificar a imensa semelhança existente entre as duas jovens. 

Obs1: 
Uma série de TV que usou e desenvolveu bastante essa Teoria do Multiverso de Everett foi a ótima 'Fringe', sobre a qual escrevi e postei muitos textos aqui no blog. Aliás, a ideia do Entrelaçamento Quântico, de formas de comunicação não-verbais e a existência de doppelgangers também estão presentes no seriado. Será que os produtores e roteiristas de 'Fringe' eram admiradores de Kieslowski? 


Então, todas estas possibilidades podem ser usadas para explicar porque as duas jovens, Weronika e Véronique estão conectadas e porque sentem que não estão sozinhas (Weronika) ou porque são afetadas por acontecimentos aos quais elas não tem ligação direta (Véronique). 


E a conexão entre as duas jovens é tão forte que quando Weronika morre, logo após ter sido escolhida para se tornar a soprano de uma orquestra, Véronique desiste de continuar com as suas aulas de canto, para desgosto do seu professor. Ela nem sabe explicar o motivo da sua decisão, mas claramente ela age desta maneira porque foi muito afetada, mesmo sem o saber, pela morte de Weronika. 


Véronique diz, para Alexandre, que a vida inteira ela teve a sensação de que nunca esteve sozinha. E ao mostrar os objetos que estão dentro de sua bolsa para ele, no hotel, ele vê uma fotografia, que Véronique tirou quando viajou para Cracóvia. Ela percebe que fotografou Weronika, a jovem que é idêntica à ela e com quem ela se sentiu ligada durante toda a sua vida. 


Logo, Véronique se dá conta da conexão que sentia com a jovem polonesa e chora, emocionada. 
Uma senhora idosa e corcunda, que anda com dificuldade. Será que os seres humanos são tão frágeis? 

Aliás, a própria maneira como Véronique e Alexandre se conheceram e se apaixonaram foi meio que de repente, eles nem mesmo conseguem explicar como este sentimento nasceu entre eles. É como se já estivesse pré-determinado que isso iria acontecer, o que é uma forma de Kieslowski questionar se, de fato, os seres humanos possuem o controle sobre as suas vidas ou se não passam de marionetes num jogo maior, a respeito do qual pouco conhecem, não possuindo controle algum sobre o seu destino.  


Além disso, o belo, poético e filosófico filme de Kieslowski também faz referências ao momento político que a Polônia vivenciava em 1990/91, quando o filme foi produzido, que foi justamente a época em que o regime comunista estava desmoronando e o país vivia um processo de democratização. 


O protesto na praça em Cracóvia e a retirada de uma gigantesca estátua (que parece ser de Lenin) são claras referências a estas mudanças políticas e sociais que ocorriam na Polônia. O filme também faz referência aos atentados terroristas que aconteciam na França naquela época. 


Mas em 'A Dupla Vida de Véronique' estes aspectos políticos ficam claramente em segundo plano, o que é uma diferença marcante em relação aos filmes realizados por Kieslowski quando o mesmo trabalhava na Polônia, quando vários dos seus filmes tinham nas questões políticas e sociais o seu tema dominante. 

Véronique fica triste quando descobre que Alexandre, por quem ela se apaixonou, entrou em contato com ela apenas porque estava escrevendo um livro e queria fazer um teste psicológico com uma mulher, sem ter tido nenhum motivo especial para te-la escolhido. 

Desta maneira, se nos filmes da sua fase polonesa predominam os aspectos exteriores da realidade e de que maneira os personagens de seus filmes eram afetados tais acontecimentos, ao começar a filmar na França o cineasta polonês parece ter passado a priorizar o interior dos personagens. 


Outro aspecto marcante deste filme fabuloso de Kieslowski está relacionado à questão do livre-arbítrio. 


Kieslowski parece questionar se os seres humanos são realmente livres para tomar as suas decisões ou se os mesmos são apenas meras marionetes que são manipuladas por uma Força Superior (ou Forças Superiores)? Aliás, o namorado (Alexandre) francês de Véronique é justamente alguém que trabalha com marionetes. 


Ou será que os acontecimentos que mudam e definem as nossas vidas são frutos do acaso? 


Alexandre chega a fazer duas marionetes de Véronique, sendo que ele justifica isso dizendo que elas costumam quebrar facilmente. Kieslowski parece que está se referindo à fragilidade do ser humano. Esta ideia sobre a fragilidade humana parecer ser representada no filme pela presença de uma senhora idosa, corcunda, que anda lentamente. 

Véronique e Alexandre mal se conhecem e se apaixonam, como se isso já estivesse escrito. 

Será que é assim que Deus age em relação aos seres humanos, parece perguntar Kieslowski, criando várias versões de cada um de nós, pois somos muito frágeis e quebramos facilmente?


A história de vida de Weronika e de Véronique não fecha as portas para nenhuma destas possibilidades. 


Com isso, Kieslowski consegue fazer uma série de questionamentos a respeito da existência e da vida humana, apresentando a sua visão sobre a mesma, ao mesmo tempo em que deixa espaço para que as pessoas possam assistir, refletir e tirar as suas próprias conclusões. 


E tudo isso é feito ao mesmo tempo em que vemos a um filme absolutamente maravilhoso, que é uma verdadeira obra-prima do Cinema mundial, com uma fotografia estupenda e que também possui uma das mais belas trilhas sonoras da história, de autoria de Zbigniew Presnier, que trabalhou com Kieslowski em inúmeros filmes (tal como ocorreu no 'Decálogo'). 

Momento no qual Véronique descobre que havia fotografado Weronika, quando viajou para Cracóvia. 

Infelizmente, o genial e talentoso Kieslowski encerrou a sua carreira logo após filmar 'A Fraternidade é Vermelha' (1994), ou seja, após encerrar a sua fantástica 'Trilogia das Cores'.


Depois disso, Kieslowski anunciou que não realizaria mais nenhum filme, pois afirmou que já havia dito tudo o que desejava em seus filmes. E poucos meses depois ele faleceu...


Destino? Talvez. Não sei. 


Mas seria tão bom se existisse um duplo de Kieslowski e o mesmo desse continuidade à sua carreira, criando novos e geniais filmes, que fossem tão excepcionais quanto 'A Dupla Vida de Véronique'. 

Alexandre mostra uma das marionetes que fez de Véronique. Ele fez duas, porque elas, tal como os seres humanos, se quebram facilmente. 

Informações Adicionais!


Título: La Double Vie de Véronique (A Dupla Vida de Véronique);

Diretor: Krzysztof Kieslowski;
Roteiro: Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz;
Duração: 93 minutos;
Ano de Produção: 1991; 
Países de Produção: França, Polônia e Noruega;
Gênero: Drama;
Música: Zbigniew Preisner;
Fotografia: Slawomir Idziak;
Elenco: Irène Jacob (Weronika/Véronique); Aleksander Bardini (Maestro); Wladyslasw Kowalski (Pai de Weronika); Jerzy Gudejko (Antek); Philippe Volter (Alexandre Fabbri); Sandrine Dumas (Catherine); Claude Duneton (Pai de Véronique); Gilles Gaston-Dreyfus (Jean-Pierre);
Prêmios: 
Melhor Filme: Sindicato de Críticos de Cinema da França; 
Irène Jacob: Melhor Atriz no Festival de Cannes de 1991; 
K.Kieslowski: Melhor Diretor pela Federação Internacional de Críticos de Cinema - FIPRESCI.
Fim. 

Links:


Teoria dos Muito Mundos ou do Multiverso de Hugh Everett:


http://hypescience.com/interpretacao-de-muitos-mundos-vai-dar-um-no-na-sua-cabeca/


A Teoria do Multiverso pode estar certa?


http://hypescience.com/teoria-do-multiverso/

O Entrelaçamento Quântico realmente existe:


http://hypescience.com/emaranhamento-quantico-prova/


O mito do Doppelganger:


http://hypescience.com/10-historias-perturbadoras-de-doppelgangers/


Kieslowski: Outra Europa, outros filmes, outros públicos:


https://www.publico.pt/2015/12/05/culturaipsilon/noticia/kieslowski-1716160

Informações sobre o filme:

http://www.imdb.com/title/tt0101765/?ref_=nm_flmg_wr_10

Vídeo - Trailer do filme: