domingo, 18 de setembro de 2016

'A Faca na Água': Conflito de gerações, críticas políticas e tensão sexual marcam a bela estreia de Polanski! - Marcos Doniseti!

'A Faca na Água': Conflito de gerações, críticas políticas e tensão sexual marcam a bela estreia de Polanski! - Marcos Doniseti!
"A Faca na Água" foi o primeiro longa-metragem de Roman Polanski. E já em seu primeiro filme o seu talento como cineasta foi devidamente reconhecido. Muitos o consideram como sendo um dos melhores filmes de estreia da história do Cinema. 
Roman Polanski formou-se na famosa 'Escola de Cinema de Lodz', que também revelou para o mundo cineastas como Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski, Jerzy Skolomovski e Krzystof Zanussi, entre outros. Ela foi criada em 1946 e, apesar de ter passado para o controle do Estado polonês em 1950, os seus profissionais sempre desfrutaram de uma liberdade de criação sem paralelo nos demais países que adotaram o chamado 'Socialismo Real' no Pós-Guerra (Hungria, Romênia, Tchecoslováquia, Bulgária, Alemanha Oriental, Iugoslávia).

Polanski começou a sua carreira de cineasta realizando apenas curtas-metragens. 

Foram nove curtas, realizados entre 1955 e 1962, e que a julgar pelo excelente resultado alcançado neste seu primeiro longa metragem, serviram como uma excelente 'escola' para o seu amadurecimento como cineasta. E finalmente, depois de sete anos, ele dirigiu o seu primeiro longa, que é este clássico, uma pequena preciosidade, 'A Faca na Água'.

O filme tem uma belíssima fotografia em preto e branco, mas num tom fortemente cinzento, e uma bela trilha sonora, que foi composta pelo talentoso músico de Jazz polonês Krzysztof Komeda. E Polanski também faz um brilhante uso dos enquadramentos de câmera. sendo que em muitos deles os três personagens aparecem ao mesmo tempo, mas isso é feito de forma bastante variada. Um mestre, desde o início. 
Andrzej beija Krystyna, mas ela não reage, pois o amor entre eles já deixou de existir há muito tempo. 
Essa estreia de Polanski em longas metragens foi bastante elogiada e conta com apenas três personagens, sendo que praticamente o filme inteiro se passa em um único ambiente, que é um simples barco. Ele voltaria a fazer isso em outros filmes. 

A trama de 'A Faca na Água' é bem simples: Em um domingo, um casal bem sucedido (Andrzej e Krystina) sai para passear em seu pequeno barco e, no meio do caminho, encontra um jovem caroneiro (pobre, solitário, sem casa, sem família e, também, sem um nome), ao qual Andrzej quase atropelou e matou. Eles acabam convidando o jovem para o passeio de barco que irão fazer e o mesmo acaba aceitando, apesar de ter sido tratado com um certo desprezo pelo proprietário da embarcação. 

Aliás, já durante a viagem, de carro, que ele e Krystyna fazem até a marina, percebe-se que o marido é autoritário e gosta de se impor perante a sua bela e sensual esposa, pois enquanto ela dirige, ele mexe no volante em várias oportunidades, o que deixa a esposa irritada. Ela acaba abandonando a direção, fazendo com que ele tenha que dirijir até a marina.

Nota-se, também, que há bem pouco diálogo entre o casal, como se a paixão e o amor já não estivessem presentes no relacionamento deles há muito tempo. Inclusive, quando Andrzej beija a esposa, ela não reage. Fica claro que ela não o ama mais e o passeio é feito apenas para manter as aparências da vida de casal e para preencher o tempo. 
O caroneiro irá modificar radicalmente o domingo de Andrzej e de sua bela e sensual esposa, Krystyna.

Durante o filme, pouco ficamos sabendo a respeito da vida pessoal dos protagonistas, mas o que é dito é suficiente para se perceber quais são as diferenças existentes entre eles em termos de classe social, idade e interesses na vida.

Do início ao fim do filme veremos um conflito, que irá crescer de intensidade, entre Andrzej e o jovem caroneiro. Este conflito se desenvolve, inicialmente, em função da diferença de idade entre os mesmos, caracterizando um nítido conflito de gerações entre os dois duelistas. Afinal, enquanto Andrzej é um homem adulto, maduro, com uma bela esposa, desfrutando de uma vida tranquila e estável, o jovem caroneiro é um aventureiro, solitário, que sai pelo mundo em busca de novas experiências de vida.

A presença de Krystina (que é interpretada pela bela Jolanta Ulemcka, atriz dotada de uma beleza natural que não se vê mais atualmente, quando vivemos em um mundo em que as mulheres abusam de exercícios, maquiagens, botox, cirurgias plásticas e silicones) acaba introduzindo um novo elemento no conflito entre os dois homens, pois fica evidente, para Andrzej, que o jovem caroneiro sente-se atraído por sua bela esposa (mas quem não se sentiria?).

E com isso está criado o clima para que os dois homens comecem um verdadeiro duelo de egos, que aumentará de intensidade gradualmente e que chegará ao clímax no final. Assim, ao choque de gerações, soma-se o conflito gerado pelo desejo que ambos sentem pela mesma mulher. E é claro que eles irão procurar se exibir para ela, a fim de mantê-la sob o seu domínio (Andrzej) ou de vir a conquistá-la (jovem caroneiro). 


Desde o início tivemos uma atração entre o jovem caroneiro e a bela Krystyna, que é infeliz no seu casamento, meramente de aparências, com Andrzej.

E neste conflito entre os dois homens, estes voltarão aos seus instintos mais primitivos, procurando demarcar territórios e se exibindo para a bela mulher, Krystyna, que acompanhava a tudo aquilo com indiferença, até que no final ela acaba deixando a passividade de lado e também toma a iniciativa, o que a levará a entrar em um forte conflito com o marido autoritário e, também, com o jovem caroneiro.

Aparentemente, nada acontece durante o filme. Mas o diabo mora nos detalhes e, de fato, tudo está acontecendo: as provocações, olhares, desafios, humilhações, demonstrações de perícia naquilo em que eles se destacam (Andrzej no domínio do barco; o jovem caroneiro no uso da faca que carrega consigo). 

Assim, desde o início o marido autoritário, Andrzej, tratou o jovem caroneiro com hostilidade, sendo que praticamente o empurrou para dentro do carro, falou que ele deveria dormir durante a viagem e o chamou de vagabundo.

Mas, se é assim, qual o motivo dele ter oferecido carona e, também, tê-lo convidado para o passeio de barco? Isso acontece porque o jovem caroneiro é a novidade, é o que poderá acrescentar algo ao passeio que, sem a presença do jovem, seria chato e monótono, sem nada de interessante para fazer ou sobre o que conversar, pois o casal vive de aparências e o amor entre eles já não existe mais.
A bela e sensual Krystyna acaba sendo disputada pelo seu marido e pelo jovem caroneiro, que travam um duelo entre si, mas durante a maior parte do tempo ela ficou indiferente a tudo.

No início, Andrzej procura demonstrar seus conhecimentos e habilidades no domínio do barco. E o jovem caroneiro faz o mesmo, mas com a sua faca, que ele leva para todos os lugares. Ele também se oferece para ajudar a levar o barco em meio a uma região pantanosa, sobe até o alto do mastro, tudo para demonstrar a sua masculinidade, como que dizendo 'eu não sou nenhum garoto'. E Andrzej também tentará se mostrar como alguém forte e vigoroso, apesar de ser bem mais velho.

Aliás, esse festival de exibicionismo e de provocações é algo que ambos farão, durante todo o filme, até chegar o momento em que eles irão partir para as vias de fato.


E é claro que Andrzej ri do jovem caroneiro quando este tenta demonstrar uma habilidade que não domina, como a de remar, fazendo com que o barco fique 'andando' em círculos. O caroneiro fica irritado e joga o remo no mar, gerando o primeiro conflito aberto entre ele e o casal.

Quando começa a chover fortemente, eles descem para a pequena cabine e, ali, o jovem caroneiro olha para a mulher que está se enxugando, momento em que o seio dela fica visível. Ela diz para ele não olhar, mas quem disse que ele resiste? E o marido percebe e não gosta nenhum pouco disso. O clima entre eles está ficando cada vez mais tenso.

Andrzej e o caroneiro disputam a atenção de Krystyna e entram numa disputa de egos que explodirá no final. 

A disputa entre os dois homens envolve atos bem simples, como encher colchão de ar, arremesso de facas, jogo de palitos (neste, Andrzej se gaba de ser virtualmente invencível). E a bela esposa, até este momento, ignora essa guerra de egos entre os dois homens.

Logo depois, Krystina canta, para o jovem caroneiro, uma música que deixa claro que o amor entre ela e o marido não existe mais e que o relacionamento deles caiu na rotina já há muito tempo, algo que o desagrada, dizendo que aquela música 'é estúpida'. 

A letra diz 'A vida se desvaneceu, e o nosso amor se foi'. Interessante, nesta cena, são os olhares de soslaio que a bela Krystyna dá para o marido enquanto canta a música, como que dizendo 'isso é para você, sim'.

Assim, como quase todo o filme se passa em um pequeno espaço, que é o barco, em um lago, isso colabora para o aumento progressivo da tensão sexual (entre a linda Krystyna e o caroneiro), bem como do conflito e da agressividade entre os dois homens. E tudo isso irá explodir no final.

Andrzej passa a agir com o jovem caroneiro como se o mesmo fosse um funcionário subalterno e acaba jogando a faca do mesmo no mar. Com isso, eles finalmente brigam, fazendo com que o caroneiro caia ao mar.

Durante o filme, Krystyna muda radicalmente: Em alguns momentos ela é fria, em outros ela é ardente. Ela possui uma personalidade que ora é dócil, ora é rebelde. E no final ela age mecanicamente. 

Andrzej e a esposa vão atrás dele, mas não o encontram, pois ele sabe nadar e desaparece. Eles brigam por isso e ela o acusa de ter afogado o caroneiro e o chama de palhaço e farsante. E Andrzej diz que se não fosse por ele, Krystina seria uma 'puta'. Ela diz que o odeia. Assim, Krystina enfrenta o marido autoritário, sem medo.

Com isso, o conflito entre Andrzej e a esposa, que se insinuava desde o início do filme, também explodiu no final.

Quando o marido vai embora, o jovem caroneiro retorna ao barco. E Krystina, que durante quase todo o filme adotou uma postura de indiferença, mostra que é uma mulher forte e independente, pois além de enfrentar o marido, ela também esbofeteou o caroneiro, por tê-los enganados, ela e o marido, a respeito do fato de que não saberia nadar. Ela também diz que o caroneiro é igual ao marido, mas com a metade da idade e o dobro de burrice.

E depois de todo aquele desejo reprimido, por tanto tempo, Krystyna e o caroneiro finalmente se beijam e se amam. Depois, eles voltam para a marina e ele vai embora.

Krystina encontra Andrzej, sem se falarem em um primeiro momento. É o mesmo silêncio constrangedor que vimos no início do filme. Durante a viagem de carro, Andrzej diz que irão para a Polícia, a fim de comunicar o desaparecimento do jovem caroneiro no lago, mas ela diz que o mesmo voltou, está vivo e que ela traiu Andrzej ao fazer amor com o caroneiro. Andrzej fica com sérias dúvidas a respeito do que Krystina lhe disse.
Revista Time de 1963 coloca imagem do filme de Polanski na capa. A alta qualidade do Cinema produzido na Polônia conquistava muitos prêmios pelo mundo todo, o que levou o governo stalinista do país a ser mais tolerante, respeitando uma liberdade de criação que não era comum em tal sistema. Assim, críticas ao sistema comunista eram permitidas em tais filmes. 

É incrível como a Krystina muda durante o filme. No começo ela parece indiferente a tudo, mas depois ela demonstra ser romântica. Mais adiante ela se revela uma pessoa de personalidade forte, independente, que enfrenta o marido sem hesitar e esbofeteia o jovem caroneiro. E finalmente ela começa a falar mecanicamente, sem emoção alguma, quase como se fosse uma espécie de androide. 

Entendo que essa é a maneira pela qual Polanski encontrou de mostrar que o povo polonês possui uma grande capacidade de se adaptar aos diferentes sistemas políticos e sociais que existiram na Polônia. Assim, os poloneses acabam aprendendo a conviver, mesmo que de maneira conflitante, com aqueles  que, em um determinado momento, governam ou controlam o país. 

E a pedido dela, Andrzej conclui a história de um marinheiro, dizendo que não fazia ideia em que ele havia se transformado. Claramente, Andrzej fala sobre si mesmo, depois de tudo o que lhe aconteceu naquele domingo. E ele não se decide a respeito de qual rumo irá tomar, não sabendo se vai para a casa ou para a Polícia. 


'A Faca na Água': Um filme político?


Krystyna e o caroneiro trocam impressões e somente aí é que ficamos sabendo algo mais a respeito deles. Ela tem uma boa vida, possuindo carro, um pequeno iate, uma casa grande, enquanto que ele vive num quarto junto com mais seis jovens. Essa é uma maneira nada sutil de Polanski denunciar as desigualdades sociais que existiam no país, onde a chamada 'nomenklatura' (burocracia) do Partido Comunista desfrutava de privilégios e de benefícios que eram inacessíveis à maioria dos poloneses.
No final, Andrzej fica em dúvida sobre qual o rumo que deverá seguir.

Assim, este excelente filme de Polanski pode ser interpretado, também, de uma outra forma, bem mais política e social.

Desta maneira, Andrzej representaria o regime stalinista polonês, autoritário e repressivo, com seus burocratas privilegiados, e que é odiado pelo povo, sendo que este é simbolizado por Krystyna. Esta (Krystyna/povo) adota uma postura aparentemente dócil, submetendo-se a Andrzej (ou seja, ao governo estabelecido do país), mas o detesta, de fato. 

Já o jovem caroneiro representaria o desejo de liberdade e democracia dos poloneses, mas este ainda seria um povo imaturo, que talvez não estivesse preparado para viver em liberdade. E talvez seja justamente por isso que Krystyna diz para o caroneiro que 'Você não é melhor do que ele... Ele foi como você. E você quer ser como ele. E você será, se tiver coragem'.

Isso mostra que o filme de Polanski possui um tom bastante crítico não apenas em relação ao sistema 'comunista' que vigorava no país, mas também em relação ao próprio povo polonês, demonstrando um elevado grau de ceticismo do cineasta a respeito do futuro do país. 

Obs1: No livro 'Pós-Guerra: Uma história da Europa desde 1945', o historiador britânico Tony Judt diz que, quando os países do chamado 'Leste Europeu' adotaram o regime 'socialista', ainda existia, por parte de muitas pessoas nestes países (mais em alguns e menos em outros), uma expectativa positiva em relação ao novo sistema político e social. 
Nos filmes produzidos na Polônia, na época do regime stalinista, críticas ao sistema político e social do país eram toleradas, pois a qualidade da produção cinematográfica era excelente e conquistava muitos prêmios internacionais, aumentando o prestígio do país.

Este promoveria uma melhoria sensível nas condições de vida da população, ao mesmo tempo em que esta passaria a desfrutar de amplas liberdades, o que não aconteceu durante o período da ocupação nazista e nem antes desta, quando tais países (com a única exceção da Tchecoslováquia) possuíam governos ditatoriais. 

A melhoria material até que aconteceu, com os governos destes países oferecendo educação, saúde, pleno emprego, alimentação e moradia subsidiados pelos Estado, mas no aspecto das liberdades democráticas havia sérias restrições. 

Porém, o Cinema foi um dos setores que desfrutou de mais liberdade, pois os filmes produzidos nestes países (Polônia, Tchecoslováquia) eram de excelente qualidade e conquistavam muitos prêmios internacionais (Cannes, Oscar, etc). Por isso, os governos destes países foram mais tolerantes com as críticas, mais do que evidentes, que os extremamente talentosos cineastas faziam em suas obras.  

Tony Judt chega a dizer, em seu livro, que a população destes países não desejava o fim do Socialismo, mas queria desfrutar de Liberdades individuais e coletivas (expressão, opinião, manifestação, reunião, organização, imprensa), desejando conciliar as conquistas sociais do sistema com a democracia. 

Mas o caminho que estas nações seguiram depois das chamadas 'Revoluções Democráticas' de 1989/90 não foi o do Socialismo Democrático, tal como era o desejo da imensa maioria da população, mas o do Capitalismo Neoliberal (imposto pelos EUA, FMI e pela UE), o que gerou uma séria crise econômica e social em todos eles, que passaram por um brutal aumento do desemprego, da pobreza, da fome e da prostituição. 

Isso demonstra que o ceticismo de Polanski sobre o futuro da Polônia era mais do que justificado.
Eu não sei se mais alguém notou, mas as belas e carnudas coxas da linda Krystyna apareceram com muito destaque durante todo o filme. Esse Polanski.
Informações Adicionais!

Título: Noz w Wodzie (A Faca na Água);
Diretor: Roman Polanski;
Roteiro: Roman Polanski; Jakub Goldberg; Jerzy Skolimowski;
Duração: 90 minutos;
País de Produção: Polônia;
Ano de Produção: 1962;
Música: Krzysztof Komeda;
Fotografia: Jerzy Lipman;
Elenco: Jolanta Umecka (Krystyna); Leon Niemczyk (Andrzej); Zygmunt Malanowicz (Caroneiro).

Links: 

Informações sobre o filme:

http://www.imdb.com/title/tt0056291/?ref_=fn_al_tt_1

Escola Nacional de Cinema de Lodz:

http://iarochinski.blogspot.com.br/2007/09/melhor-escola-de-cinema-do-mundo.html




Nenhum comentário: